Elitista e patriarcal: pesquisadora amplia olhar crítico sobre a Semana de 22



Elitista e patriarcal: pesquisadora amplia olhar crítico sobre a Semana de 22

É possível dizer que o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 vem levantando debates e críticas que, de certa forma, rememoram alguns dos questionamentos que o evento recebeu quando foi realizado, mas acrescentam novos e importantes pontos à discussão.

Idealizado por artistas que se tornaram símbolo do modernismo brasileiro, o acontecimento ambicionava romper com a linguagem tradicional da época e retratar uma identidade genuinamente brasileira. Mas, já na época, foi muito questionado.

Da parte dos conservadores, vinham críticas à estética modernista, sendo a Semana classificada por eles como "um escândalo" e "um fracasso". Além disso, mesmo contradições que parecem estar em pauta apenas atualmente já eram apontadas.

Quatro anos após o evento, o jornal Getulino, que defendia os direitos da população preta, publicou um artigo criticando as relações entre o modernismo e a elite cafeeira. O texto cita a Semana de Arte Moderna, que foi patrocinada por barões do café.

Em 1942, o próprio Mário de Andrade afirmou que o movimento do qual participou falhou em captar a realidade e não buscou "revolta" contra a situação da época. Nesse mesmo sentido, a falta de diversidade e de representação popular do encontro de artistas também foi apontada décadas depois, levantando análises até hoje.

O aniversário de 100 anos do evento vem acrescentando outras pautas à análise crítica do movimento. Em entrevista ao programa Central do Brasil, parceria do Brasil de Fato com a TVT, a escritora e pesquisadora Márcia Camargos fala sobre esses acréscimos ao debate sobre a Semana de Arte Moderna.

Autora do livro Semana de 22 - Entre Vaias e Aplausos, ela é taxativa ao afirmar, no entanto, que os questionamentos não diminuem a importância e o legado da Semana para a arte e a cultura brasileiras. "A Semana de 22 teve uma importância muito grande, e a prova disso é que nós estamos aqui debatendo, passados 100 anos", destaca.

Leia a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato: 100 anos depois, estamos debatendo e relembrando as cenas da Semana de Arte de 22, mas ao que parece ela não foi tão recebida na época, Como foram essas reações?

Márcia Camargos: Para quem [ainda] está celebrando 100 anos depois, realmente fica difícil entender que, na época, ela era vista como uma coisa de grã-fino. Foram poucos os jornais que noticiaram seguidamente. Isso mudou a partir do segundo sarau, quando Oswald de Andrade teria arregimentado os estudantes de Direito do Largo São Francisco para vaiar e dar o tom do contra, porque estava achando aquilo tudo muito monótono. A partir da segunda noite, os jornais que estavam reticentes a falar sobre o evento foram obrigados a falar sobre o assunto, nem que fosse para criticar.

O mais interessante é que, apesar de os modernistas — que na época não eram conhecidos como tal, eles eram os "futuristas" — estarem buscando essa questão da identidade nacional, das raízes brasileiras e renegarem tudo o que vinha de fora, foram as revistas das comunidades alemã e italiana que fizeram as matérias mais equilibradas e ponderadas sobre a Semana de 22.

O que a Semana produziu de tão relevante? O que trouxe de novo para as artes e a cultura brasileira?

A Semana em si foi o primeiro grito público, o primeiro ato público do que viria depois a ser definido como modernismo. Ela foi o estopim desse movimento que surgiu depois, ao longo da década de 1920, através das várias revistas que surgiram, como a Klaxom, Terra Rocha e Outras Terras e todos aqueles manifestos, como Pau Brasil, da Antropofagia e mesmo o Verde e Amarelo, um movimento que era ligado aos participantes que deram uma guinada para a direita, ao contrário de outros que foram para a esquerda. Oswald de Andrade, a Tarsila do Amaral, já em 1928, abraçaram a causa dos trabalhadores e toda a questão dos movimentos operários.

O que precisa ficar bem claro é que a Semana de 22 é uma coisa, e o modernismo é outra, ele é o desdobramento deste evento que aconteceu no Teatro Municipal. Evidentemente, a Semana não teria fincado raízes, e nós não estaríamos aqui, conversando sobre ela após um século, se ela não tivesse deixado sementes, se ela não tivesse uma essência muito forte e não tivesse colaborado para uma mudança radical nos rumos das artes e da produção cultural brasileiras, tanto em termos de literatutra, quanto de artes plásticas e música.

Quais foram essas sementes da Semana?

Mais do que a Semana, o modernismo contribuiu para romper com uma série de paradigmas. Um deles foi essa diferença entre nacional e estrangeiro. Eles conseguiram, através da antropofagia, mostrar e chegar à conclusão de que nós poderíamos produzir uma arte brasileira, sem deixar de fora aquelas contribuições dos europeus, por exemplo. Mesmo porque a gente precisa lembrar que, durante o ano da realização da Semana de 22, um terço da população economicamente ativa da cidade de São Paulo era formada por imigrantes.

Uma outra coisa que a Semana de 22 tinha ignorado, a produção popular, o repertório negro, foi sendo depois incorporada às produções dos próprios modernistas. Nas viagens da Tarsila do Amaral ao interior de Minas gerais, ela chegou à conclusão de que aquelas cores vibrantes dos casarios não eram pejorativamente caipiras, eram cores tropicais que deveriam ser valorizadas. Então, tudo isso que esteve ausente na Semana de 22, como essa diversidade, esse olhar popular, isso tudo foi incorporado ao longo da década de 20.

Por que São Paulo foi o palco do evento?

No livro Entre Vaias e Aplausos, que eu escrevi quando a Semana completava 80 anos, eu já abordava alguns problemas da Semana de 22 que agora vieram à tona. Por exemplo, ter sido um evento excludente e elitista. Eu também falava que a Semana ocorreu em São Paulo, e não no Rio de Janeiro, que era a capital federal e reunia a maior parte dos artistas e produtores culturais, por causa da imigração.

São Paulo recebeu essa injeção de estrangeiros quase do dia para a noite. Dentro, inclusive, daquele propósito de embraquecimento da população. De uma hora para outra, a cidade recebeu toda essa massa de imigrantes, sobretudo italianos. Nas ruas se falava uma mistura de paulista com italiano. Essa injeção cosmopolita fez com que a Semana de 22 acontecesse em São Paulo, e não no Rio de Janeiro.

Teve uma outra questão muito importante, que foi o desejo das elites de colocar São Paulo no mapa cultural do Brasil. Porque, até então, as companhias líricas faziam roteiros em Buenos Aires, Rio de Janeiro, talvez até Fortaleza e alguma outra capital do Nordeste e ignoravam solenemente São Paulo.

Então, aquilo era um ofensa para a elite dirigente, para a elite cafeeira, que não se conformava que São Paulo, que já era o principal polo econômico do Brasil e tinha essa vocação da locomotiva do país, fosse ignorada pelas companhias. Então, eles, ao longo da década de 1910, dotaram a capital de equipamentos culturais, para que ela cumprisse sua vocação de metrópole. Um exemplo é a inauguração do Teatro Municipal. Houve realmente esse esforço dessa burguesia endinheirada de bancar esse evento para colocar São Paulo no mapa cultural do Brasil.

Recentemente, o escritor Rui Castro publicou um texto no jornal Folha de S.Paulo que busca, de certa forma, desmistificar a memória sobre a Semana, dizendo que ela não era tão revolucionária como parece e que seus personagens estavam mais alinhados à política conservadora do café com leite, da primeira república ou república velha. Como a senhora avalia esse ponto?

A história é dinâmica, precisa sempre ser vista e revisitada, mas o que o Rui Castro se arvora a dizer como se fosse a grande novidade é coisa velha. É coisa que não apenas eu falava há vinte anos. Araci Amaral e outras e outros historiadores e estudiosos do assunto já vinham, dizendo que a Semana de 22 foi elitista, excludente.

Muito dessa mitificação em torno da Semana foi feita por grupos ligados à Universidade de São Paulo (USP), que o Rui Costa chama, inclusive, de "a indústria da USP". Intelectuais de muito peso, que transformaram a Semana em um divisor de águas da cultura brasileira, e nunca foi isso. Nós estamos batendo nessa tecla há anos e anos.

Agora no centenário, a gente acrescenta outras questões. Por exemplo, a diversidade de gênero. A gente precisa lembrar que a Semana não conseguiu superar as fronteiras da sociedade patriarcal do período. No palco, para 14 homens havia apenas duas mulheres, Guiomar Novaes e Yvonne Daumerie, que é uma bailarina sobre quem muito pouco se conhece.

Na exposição de artes aberta no saguão, havia dez homens e apenas Anitta Malfati e Zina Aita. Para cerca de trinta participantes, havia apenas quatro mulheres, o que faz mais ou menos 10% de participação feminina, algo que hoje seria muito criticado.

Mas, a favor da Semana de 22, a gente tem que acrescentar que ela foi um evento que aconteceu no improviso e por acaso. Não houve um planejamento de anos. Para termos uma noção concreta, tudo começou em novembro de 1921 para um evento que aconteceu em fevereiro de 1922. Nem três meses se passaram. Um evento dessa envergadura, hoje em dia, o projeto começaria um ou dois anos antes.

Então, ela foi feita de uma forma espontânea, improvisada. Por isso também houve essas ausências do repertório negro, da produção cultural popular. O violão, por exemplo, que [Heitor] Villa-Lobos já tocava tão bem, ficou de fora. Enfim, a gente pode citar várias falhas da Semana de 22, o que não lhe tira a importância, o impacto, nem a vocação revolucionaria.

Quem são os personagens da Semana de 22 que permanecem na memória sobre o evento?

Os principais personagens seriam Oswald e Mário de Andrade, pela obra poética. Anita Malfatti ficou um pouco esquecida e poderia ter sido uma das grande herdeiras do modernismo. Mas, ao contrário da Tarsila [do Amaral] — que seguiu Oswald de Andrade nos movimentos Pau Brasil, da Antropofagia e mesmo essa virada a esquerda, com aquele quadro dos operários —, Anita recuou. Ela efetuou um retorno à ordem e abandonou aquelas pinceladas vigorosas que tinham encantando seus amigos artistas.

Também Di Cavalcanti desenvolveu uma carreira importante. Vicente do Rego Monteiro, que alguns estudiosos dizem que foi um dos nomes mais criativos, revolucionários e inovadores da exposição, embora depois tenha dado uma guinada à direita, inclusive simpatizando com o próprio nazismo.

Sem esquecer também o [Victor] Brecheret, que estava ausente da Semana, mas mandou 12 peças para serem expostas. A Tarsila do Amaral não expôs na Semana de 22. Ela estava em Paris na época, preocupada em enviar uma obra para o Salão Oficial de Artistas Franceses, de um caráter bastante conservador. Mas ela se tornaria uma das musas do modernismo, justamente porque, ao lado de Oswald de Andrade, que se tornaria seu marido, fez uma carreira brilhante e inovadora, deixando uma produção belíssima.

100 anos depois de realizada, que legado a Semana deixa para a construção da identidade brasileira e para a cultura popular?

A Semana de 22 teve uma importância muito grande, e a prova disso é que nós estamos aqui debatendo, passados 100 anos. As grandes contribuições seriam essa ruptura, essa questão do popular e do erudito, que você pode unir em uma coisa só. Também a antropofagia, que Antônio Cândido diz que é uma das criações mais brilhantes da dialética modernista. Aquilo de você deglutir o que vem de fora para produzir uma arte autenticamente brasileira.

Nessa busca da identidade nacional, você não precisa renegar a contribuição do estrangeiro, o que hoje em dia seria impossível. A questão do centro e da periferia. Porque não só a arte é feita por uma elite, mas também há essa grande contribuição dos movimentos que não pertencem à elite, mas têm dado sua contribuição.

Movimentos que estiveram ausentes da Semana de 22, mas foram incorporados ao longo da década de 20. Hoje, nós temos essa grande contribuição dos movimentos da periferia, das favelas, do movimento negro, LGBT, que hoje estão ocupando o centro do palco. Isso eu acho que começou muito lá atrás, com a Semana de 22.

Fonte: Brasil de Fato (SP), por Nara Lacerda e Afonso Bezerra

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