“A gente continua desempregado do mesmo jeito. Eu mesmo já tenho seis anos desempregado. Então eu não sei se adiantou ou não esse negócio de combate à corrupção. Porque teve a corrupção mas todo mundo estava trabalhando. Todo mundo estava botando o pão de cada dia dentro de casa.”
O relato de Ubiray de Carvalho Santos, conhecido por Bira, simboliza o drama de centenas de famílias que vivem no Sítio Areal, ocupação erguida por ex-trabalhadores de empresas inseridas dentro do Complexo de Suape, em Cabo de Santo Agostinho (PE), a 34 km de Recife.
Baiano de Camaçari, seu último emprego como pintor industrial foi em 2015. Desde lá, não consegue mais nenhuma assinatura na carteira de trabalho. “Foi nós, os peões, Nós que recebemos todos os impactos. Tanto que tem mais de doze milhões de desempregados no Brasil”, avalia.
Segundo o Dieese, a Operação Lava Jato foi responsável por 4,4 milhões de novos desempregados no país. Os setores de petróleo, gás e construção civil foram os mais afetados.
A operação provocou o rompimento de contratos entre Petrobras e empreiteiras, paralisando obras de infraestrutura em todo o país.
“Quando a gente chegou no portão, ninguém entra e ninguém sai. Foi repentino. O ônibus chegou pra gente trabalhar, o portão estava fechado”, relembra Bira.
O Brasil de Fato foi até o Sítio Areal e reuniu ex-trabalhadores para um bate papo. O intuito: analisar o impacto social e econômico das demissões
Números da Lava Jato
Em nota enviada à reportagem, o Ministério Público Federal no Paraná afirma que, até o momento, a Lava Jato atingiu a marca de R$ 11 bilhões devolvidos aos cofres públicos e que "ainda há muito a se recuperar".
Em abril deste ano, em reportagem da revista Veja, o MPF anunciou que, no total, estaria prevista a devolução de R$ 25 bilhões com os 43 acordos de leniência e os 156 acordos de colaboração premiada.
Ambos valores não se comparam aos prejuízos estimados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Segundo a entidade, a operação fez o Brasil perder R$ 172,2 bilhões em investimentos e provocou uma queda de 3,6% no Produto Interno Bruto (PIB).
Os números da pesquisa do Dieese, analisam um período de 4 anos, de 2014 a 2017, intervalo de tempo no qual a operação esteve mais ativa.
A entidade analisou por um lado o conjunto de documentos oficiais, como os do Tribunal de Contas da União (TC), e também as mais de 50 obras e projetos paralisados por conta da operação. Computou também o próprio faturamento da Petrobras e como a empresa mudou a locação de investimentos após a Lava Jato.
O início do colapso se deu no dia 28 de janeiro de 2015, quando Sergio Moro, então juiz da Lava Jato, recomendou a suspensão imediata dos contratos da Petrobras com empresas sob investigação, em ofício entregue ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O pedido incluía a interrupção mesmo de obras em andamento, ou praticamente finalizadas.
Somente no setor de infraestrutura, um estudo divulgado nesta segunda (19) pelo Sindicato das Indústrias da Construção Pesada mostra que o Brasil deixou de arrecadar quatro vezes mais do que tudo o que a Lava Jato diz que recuperou.
Em 2012, o orçamento do governo federal para infraestrutura caiu 60%, de R$ 114 bilhões para R$ 43 bilhões, neste ano. Uma em cada cinco empresas no setor faliu e 1,3 milhão de postos de trabalho foram fechados.
Fausto Augusto Junior, diretor técnico do Dieese, explica que existem mecanismos para combater a corrupção com custos sociais e impactos econômicos muito menores do que o observado no caso da Lava Jato.
“A gente perdeu alguma coisa perto de quase R$ 50 bilhões de impostos que deveriam ter sido arrecadados se tivesse ocorrido uma outra política em relação à Lava Jato. Você na verdade deixou de gerar quase R$ 250 bilhões de riquezas a partir de todo o desmonte dos investimentos que a Lava Jato trouxe. Só entre previdência e FGTS, o Brasil deixou de arrecadar por volta de R$ 86 bilhoes”, analisa um dos autores do livro Operação Lava Jato: crime, devastação econômica e perseguição política.
O exemplo internacional
Punir os altos executivos, prezando pela sobrevivência das empresas, foi uma estratégia usada pela Alemanha no combate à corrupção nas duas primeiras décadas do século 21.
O país hoje está entre os 10 melhores rankeados - e menos corruptos - na edição de 2021 do ranking da corrupção elaborado pela ONG Transparência Internacional (TI), que calcula o Índice de Percepção da Corrupção (IPC) entre as nações desde 1995.
Os alemães chegam a esse resultado, mesmo tendo enfrentado dois escândalos de corrupção de repercussão internacional: na Siemens, em 2005; e na Volkswagen, em 2015.
Em ambos os casos, o Ministério Público de Munique e o Poder Judiciário alemão puniram as empresas, prenderam executivos, e exigiram a troca, no caso da Siemens, de toda a diretoria do conglomerado. Os trabalhadores do chão de fábrica, no entanto, permaneceram empregados. E as empresas, recuperam sua posição estratégica na economia alemã.
Para o diretor do Dieese, punir as empresas com a suspensão dos contratos, em muitos casos, não traz muitos prejuízos aos altos executivos. “No combate a corrupção, é preciso salvaguardar a pessoa jurídica”, pontua.
Na Itália, a operação Mãos Limpas, tida como uma inspiração para o modelo de investigação e punição observada na Lava Jato, também apresenta resultados pouco efetivos. O país não está sequer no grupo dos 40 melhores do ranking da Transparência. O Brasil ocupa a 96 posição.
O diretor do Dieese também pondera, além da questão jurídica, a atuação da mídia como fator relevante para a desarticulação da Petrobras.
"O problema não é reduzir os níveis de corrupção no nosso país, o problema são os mecanismos utilizados pela Lava Jato, que na verdade, está ficando cada vez mais claro, tinha muito mais uma atuação política", analisa.
O Sítio Areal
O Sítio Areal, onde vivem aproximadamente mil pessoas, fica no distrito de Nazaré, entre as praias de Guaibu e Suape, dentro do Parque Armando Metropolitano Cavalcanti de Holanda - uma área administrada pelo Complexo de Suape.
“Essa comunidade surgiu mediante as demissões em massa que ocorreram tanto no Porto de Suape quanto na Refinaria Abreu e Lima”, conta a paraense Marcicleia Souza.
Marcicleia veio com o marido e mais dois filhos para a região de Suape, em 2012. Primeiro na Refinaria Abreu e Lima, depois na Alumini (antiga Alusa), o caldeireiro e encanador industrial chegava a ganhar 6 mil reais, acumulando horas extras.
“Nós morávamos em Garapu, em uma casa com três quartos, uma suíte, banheiro, sala social, garagem, uma casa muito confortável. Com dois meses nessa casa ele foi demitido e a gente ficou muito desesperado”.
Após a demissão, o marido passou a fazer bicos como pedreiro e garçom na turística Porto de Galinhas, e ela permaneceu desempregada.
Quando a justiça liberou 44% da rescisão e do FGTS, em ordem extraordinária, quase a totalidade foi para pagar os empréstimos que a família fez no Banco Bradesco. Até hoje, eles aguardam o recebimento do resto dos rendimentos a que têm direito.
“Todo mundo era culpado, todo mundo lavou dinheiro, todo mundo superfaturou obras. Porém, em nenhum momento eles se preocuparam com as pessoas que trabalhavam nessas empresas”, opina a trabalhadora.
Em 2018, Marcicleia conseguiu vender um terreno da família em Barcarena (PA), sua cidade natal. Foi com o dinheiro que construiu um banheiro, um segundo quarto, e a garagem que abriga o carro da família, que não sai do local há pelo menos quatro anos.
“Não volto pra Belém porque não tem oportunidade de trabalho pra minha fonte de renda principal que é o meu esposo, eu tenho dívida do cartão de crédito até hoje no Bradesco, empréstimo pessoal que a gente pegou pra poder suprir as necessidades pelo menos de alimentação da família, a gente deve, o carro ele há seis anos com documento atrasado, eu nunca consegui colocar em ordem ainda.”
“Não temos nem previsão da gente pelo menos minimizar os nossos prejuízos que a gente teve em decorrência das demissões em massas que aconteceram lá em 2014”, completa Marcicleia.
"A gente vive um pesadelo"
Já Maria Deisiane veio de Dias D´avila, na Bahia, também com o marido em busca de trabalho no porto de Suape. Chegou a fazer os exames médicos, mas nem chegou a começar. O marido, também baiano, viu a empresa ter o contrato suspenso com a Petrobras.
Ele morreu desempregado, há 4 meses. Hoje, viúva, ela cria três crianças com a renda que ganha vendendo acarajés na comunidade.
“Eu conheço um ditado que diz assim, a corda quebra sempre para o lado mais fraco. E sofre todos nós trabalhadores. Porque assim, os grandes empresários mantiveram o seu patamar de vida. E na minha casa foi afetado para os meus filhos, para o meu marido e pra mim. Porque os meus filhos estavam sendo beneficiados com o plano médico. Hoje eles não têm. Porque eu não tenho emprego”, explica a soldadora.
“Hoje eu sou viúva, estou sozinha. Fazendo bico, vendendo acarajé. E a gente sabe que o comércio é surpresa, um dia ele dá bom, outro dia ele dá mais ou menos. Então assim, eu tô com duas crianças, é dificultoso para a alimentação”, completa.
Em Cabo de Santo Agostinho, apenas 19,8% da população tem emprego formal e quase metade recebe até um salário mínimo por mês. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2020.
“Viemos pra aqui, saímos da nossa terra em busca de um sonho e hoje a gente vive um pesadelo”, lamenta Maria.
Água, luz e saneamento básico
No Sítio Areal, tanto a água como a luz são clandestinas, e não há saneamento básico. As famílias também carecem de acesso a equipamentos públicos de saúde.
Antes, com o trabalho na refinaria, Uilams Diego Batista dos Santos conseguia ir à praia e comer peixe com a família. Hoje, sonha com duas coisas: emprego e moradia digna.
“Um lugar como esse aqui era pra ter eletricidade, água, saneamento básico, mas a gente não vê nada aqui”, aponta o ex-montador de andaime.
Conhecido por todos como “Peu”, Uilams recebeu o Brasil de Fato no pequeno comércio que administra na praça central do Areal, em frente ao local onde as crianças descem do ônibus escolar, a única conquista da comunidade.
No negócio, vende bebidas, salgadinhos e doces. É o que garante a renda mensal do trabalhador, que trouxe a família da Bahia para a região de Suape, em 2012.
“Depois das demissões o pessoal conseguiu juntar um dinheirinho pra poder comprar um material e construir os barracos aqui né? Como o desemprego estava grande a gente foi e construiu os barracos pra poder ter a nossa moradia digna aqui”.
“No início era um quartinho né? Para poder a pessoa entrar e já morar nela, entendeu? Aí faz um quartinho, bota um biquinho de luz aqui, aí já cai pra dentro e se constata já como moradia”, relembra Peu.
Após a demissão, Ubiray de Carvalho Santos passou seis meses morando de aluguel. Sem conseguir cobrir os custos da casa, ergueu seu barraco no Sítio Areal.
Ele relata a pressão da administração do Complexo de Suape para que a comunidade não se inserisse no local. No início, por intervenção da empresa, sua casa foi derrubada duas vezes, segundo ele. A da sua mãe, foram mais três.
"Eles iam derrubando e nós construindo. Por quê? Porque nós não tínhamos onde morar’’, conta. As dificuldades, segundo o pintor industrial, permanecem até hoje: “a gente tem que ficar na gambiarra, vivendo ao léu. Vivendo como eles dizem, “de favor aqui no terreno deles”. Só o que queremos mesmo é nossa moradia digna, é saneamento básico, os documentos da nossa casa”, conta Bira.
“Todo mundo aqui, se você for em cada casa, tem protocolo de solicitação para legalizar a energia, pra gente pagar energia, pagar aquilo que consome”, complementa Marcicleia.
Atualmente, Bira mantém uma loja de materiais de construção, que não lhe garante uma renda para suprir a alimentação da família. “Tem produtos que não vendo desde quando abri o negócio”, ironiza. Por isso, precisa fazer bicos como entregador de gelo e de pedreiro.
“Eu não poderia deixar a minha família passar necessidade. Aí foi que a gente teve a ideia de abrir um comerciozinho. E só que aqui o bairro aqui é pequeno. A maioria está desempregada”, completa.
Avanços e declínio da Petrobras
Foi com Eduardo Campos à frente do Governo de Pernambuco, entre 2007 e 2014, que os investimentos no Complexo de Suape ganharam fôlego -incentivados pela descoberta do pré-sal – o “passaporte para o futuro”, nas palavras do ex-presidente Lula (PT).
Na época, centrada na indústria petroquímica, Suape foi alçada como um dos pilares do desenvolvimento econômico do país, gerando 46,7 mil novos empregos em Pernambuco.
Entre 2008 e 2012, segundo consta em reportagem do El País, a economia do estado subiu, em média, 4%, comparado a 2,6% da média nacional para o período.
O carro chefe da indústria petroquímica em Suape era a Refinaria Abreu e Lima (RNEST), cuja operação do primeiro trem de refino foi feita em novembro de 2014, meses após a deflagração da Operação Lava Jato.
Os primeiros efeitos da crise impulsionada pela operação em Pernambuco respingaram diretamente na empresa, considerada “a mais moderna” refinaria da Petrobras, com a maior taxa de conversão de petróleo cru em diesel do país (70%) e uma capacidade de processamento de 230 mil barris de petróleo por dia.
A desmobilização de trabalhadores da construção civil, após o encerramento das obras de construção da Rnest, era algo previsto pelo Ministério Público Federal (MPT-PE).
Na época, conforme consta em reportagem especial produzida pelo Marco Zero Conteúdo, a entidade chegou a mobilizar os 18 consórcios envolvidos na obra e propôs medidas preventivas para tentar amenizar os impactos.
Mas com a introdução da Lava Jato, o colapso socioeconômico foi antecipado e as obras nem chegaram a serem concluídas. Entre 2014 e 2015, a Rnest demitiu mais de 42 mil trabalhadores.
“Saimos nós todos sem direito ao tempo de serviço, fundo de garantia, seguro desemprego. Passei uma época de aperto, porque quando a gente sai de uma empresa, pega o dinheirinho para sustentar a família até conseguir outro serviço, né”, relembra Bira.
A Petrobras anunciou um investimento de mais de R$ 5 bilhões para concluir a obra da refinaria até 2026. O plano, anunciado no final de 2021, prevê ampliar a primeira unidade de refino e instalar uma segunda, que já estava prevista no projeto original, mas foi interrompida com as investigações do MPF.
Demissões no setor naval
A crise também atingiu as empresas que davam suporte à RNEST, como o Estaleiro Atlântico Sul (EAS), inaugurado em 2008 como símbolo da retomada do setor naval no estado. O segundo empreendimento do setor, o Estaleiro Vard Promar, foi inaugurado em junho de 2013.
Os dois estaleiros eram utilizados principalmente para a construção e reparo de embarcações e plataformas, além de atividades logísticas vinculadas à extração e refino de petróleo.
Henrique Gomes, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Pernambuco (Sindmetal - PE) assumiu a presidência da entidade justamente em 2014, quando surgiu a Lava Jato.
Em setembro do mesmo ano, a campanha salarial do sindicato conseguiu um reajuste de 10% nos salários da categoria, acima da inflação no período, que estava em torno de 6%.
O acordo benéfico aos trabalhadores, no entanto, foi ilusório. E no fim do ano, já começavam a aparecer os impactos da operação, a começar pelo fim do contrato do EAS com a Sete Brasil, companhia criada pela Petrobras para fazer o gerenciamento da compra de navios sonda para o pré-sal. A Sete interrompeu os pagamentos e o EAS passou a ter dificuldades para concluir as encomendas.
Além da Sete Brasil, o EAS foi afetado pelo fim dos contratos com a Transpetro, braço logístico da Petrobras. Com a Lava Jato, a subsidiária cancelou sete dos 22 navios que havia encomendado com o empreendimento, o que gerou uma déficit de R$ 4 bilhões na receita do primeiro estaleiro de Suape.
Os trabalhadores na época já temiam o desmonte, que começou na Refinaria Abreu e Lima com cerca de 42 mil trabalhadores demitidos, entre 2014 e 2015. Em pouco tempo, a desmobilização também se concretizou na indústria naval.
“Muitos deles entraram em desespero. Eu lembro aqui que muitos vinham até o sindicato e a gente dava cesta básica, ajudava esses companheiros. Eles queriam ter algo para dar para seus filhos. Isso era muito duro”, relembra o sindicalista.
“Homem hora”
Um dos demitidos foi José Roberto de Souza. Nativo da região de Suape, trabalhou por 4 anos no Estaleiro Atlântico Sul como pintor Hidrojatista. Está há 6 anos desempregado.
Atualmente, a renda do mês do trabalhador vem dos poucos passeios turísticos que oferece pelas ilhas e piscinas naturais da região, já impactadas pela expansão das atividades econômicas no Complexo de Suape, responsável pela extinção de mais de 500 hectares de mangue da região, segundo um estudo realizado pela Universidade de Pernambuco (UPE).
A construção dos dois estaleiros, hoje sucateados, está entre esses impactos. Tanto o EAS como o Vard Promar foram erguidos na Ilha de Tatuoca, antigo destino turístico da região e um reduto tradicional da pesca onde viviam 75 famílias - reassentadas por Suape em um conjunto habitacional desde 2014.
“Hoje a gente bota currículo e não é chamado. Quando ele chama é pra fazer serviços intermitentes. Se você tiver serviço você ganha. Se não tiver, eles pagam sete, oito reais a hora. Você é tipo um homem hora”, aponta José.
O Estaleiro Atlântico Sul (EAS) chegou a ter 11 mil trabalhadores, entre diretos e indiretos, em 2014. Hoje, varia de 300 a 700 trabalhadores contratados - e dentro das normas estabelecidas pela reforma trabalhista de Michel Temer.
Em junho de 2019, o EAS chegou a fechar às portas por um ano e quatro meses, logo após entregar o último navio à Transpetro. O empreendimento retomou as atividades em janeiro de 2021, com uma dívida de R$ 2,3 bilhões dentro do seu Plano de Recuperação Judicial. Hoje, o estaleiro não atua mais na construção de embarcações de grande porte, só faz reparos. O mesmo acontece com o Vard Promar.
A nova condição dos estaleiros de Suape faz com que os grandes projetos que antes passavam pelas empresas, hoje, sejam realizados em países como Cingapura, China e Coreia do Sul.
O cenário foi agravado sob o governo Michel Temer (MDB), em 2016, quando a Petrobras passou a vender petróleo cru e abrir mão do refino - que agregava valor ao produto. O redirecionamento da empresa se manteve com a eleição de Jair Bolsonaro (PL).
“Quando a gente tá empregado e tá recebendo um salário que dá pra segurar nossa nossa família, todo mundo ganha com isso. Ganha o comerciante, ganha a loja que vende um tecido, ganha o mercado que vende feijão, arroz, carne. No final de semana a gente fazia um churrasco. Antigamente a gente não tinha sacrifício”, completa José, que sonha pela retomada da indústria naval.
Em âmbito nacional, entre 2014 e 2016, o número de empregos no setor naval caiu de 71,5 mil para 40,2 mil, de acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
Esperança em Lula
Para o presidente do Sindmetal-PE, para cada emprego direto no setor, existiam quatro indiretos. “Você não pode bloquear a questão financeira de uma empresa que o dinheiro é estratégico para produzir, comprar os insumos, e pagar o salário dos trabalhadores. Como é que um juiz acaba com toda uma cadeia produtiva geral, que direta e indiretamente, tinha quinhentos mil empregos dentro do Brasil?”, pontua Henrique.
“Se aquele dono de empresa usou de má fé com o dinheiro em geral, repassado pelo BNDES ou qualquer situação de propina, ele tem que responder por aquele ato, mas os trabalhadores não podem ser penalizados, que formalizam a riqueza, o bem-estar, e giram a economia dentro do estado que era o que o petróleo e gás faziam naquele momento”, completa o sindicalista.
O presidente do Sindmetal-PE tem esperança que a indústria naval e petroquímica volte a se estruturar caso o ex-presidente Lula se eleja nas próximas eleições. A categoria chegou a entregar ao candidato, em sua última visita a Pernambuco, uma carta com reivindicações para a retomada do setor.
Um dos pontos centrais, é que as entidades sociais e o sindicato participem dos processos de negociação dos investimentos no setor, para que a segurança dos trabalhadores seja garantida.
“Hoje, as empresas demitem muitos trabalhadores doentes. É uma peça descartável, uma rotatividade enorme, um piso baixo, uma péssima qualidade dos refeitórios, os planos de saúde precários. Tudo devido a esse cenário”, completa o metalúrgico.
Números de Suape
Com o conceito de porto-indústria, o Porto de Suape (Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros), criado em 1976, conta com um conglomerado de mais de 150 empresas nacionais e internacionais, cujos investimentos privados ultrapassam R$ 74,5 bilhões.
Segundo a empresa, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, 90% do PIB (Produto Interno Bruto) do Nordeste está a um raio de 800 quilômetros da zona industrial, o que reforça sua localização estratégica.
Em 2021, Suape arrecadou R$ 261,6 milhões em receitas líquidas, um crescimento de 11,52% em relação ao ano anterior.
Mas a boa receita e a presença em Suape de multinacionais com lucros bilionários, como a Camil, gigante do agronegócio brasileiro, não reflete em avanços sociais tão relevantes no contexto atual.
Analisando o PIB per capita em Pernambuco, Cabo Santo Agostinho é a quinta cidade mais rica do estado, mas também a segunda maior em taxa de homicídios no Brasil, segundo levantamento do Instituto Fogo Cruzado.
O futuro da indústria
A mudança do padrão de investimento da Petrobras desde a Lava Jato, na opinião de Fausto Augusto Júnior, do Dieese, tem interferido diretamente na economia do Nordeste. O colapso na região de Suape, na sua visão, é um reflexo desse processo.
“A Lava Jato por um lado paralisou as obras, mas além disso, foi um indutor na mudança tanto na política dos preços dos combustíveis, como na política de organização e de futuro da empresa”, pondera.
"Basicamente, a Petrobras hoje está se concentrando em ser uma empresa prospectora de petróleo e não mais em uma grande empresa de energia, como era o projeto anterior", completa.
Na opinião do especialista, o grande foco para uma política industrial e de investimento, capitaneado pelo Estado, passa por alguns grandes eixos.
Além da melhora da qualidade de vida das pessoas - com acesso a saúde e a saneamento básico -, ele coloca o meio ambiente no centro do debate, e por fim, não menos importante, a questão energética. Nesse ponto, Fausto analisa que a indução para uma soberania energética é fundamental.
“Não é muito naval ou setor petroquímico ou setor químico. Mas é onde a gente quer atuar para que essas três grandes bases do novo desenvolvimento do século 21 possam ser estabelecidas”.
“A Petrobras precisa voltar a ser o grande carro chefe de um grande projeto de autonomia energética do nosso país, que passa sim pela energia fóssil do petróleo e gás, mas também passa por biodiesel, biomassa, etanol, as fontes eólicas, as fontes solares”, analisa Fausto. "O mundo mudou, e os projetos de desenvolvimento precisam ser atualizados”, finaliza.
Outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com o Complexo Portuário de Suape para entender como a estatal está atuando para garantir
direitos básicos para a comunidade do Sítio Areal, como o acesso à água, luz elétrica, e saneamento básica.
Em nota enviada à reportagem, o Complexo de Suape afirma que a comunidade Sítio Areal foi "edificada de forma improvisada nos limites do Parque Metropolitano Armando de Holanda" em "área protegida por lei" e que "novas edificações não são permitidas na região".
A estatal portuária afirma também que "sempre se manteve aberta ao diálogo, mas não tem obtido êxito no contato com os representantes da comunidade".
A empresa ainda diz que compõe o Conselho Gestor do Parque Metropolitano Armando de Holanda Cavalcanti (PMAHC), sancionado pelo Governo de Pernambuco por meio da Lei nº 17.772/2022, criado para "fortalecer o relacionamento com os moradores das comunidades da região, entre elas o Sítio Areal" e "buscar soluções conjuntas para as demandas das famílias que residem no território".
A reportagem também questionou a empresa sobre a demolição de casas no início da ocupação e se há algum projeto previsto para o reassentamento das famílias. Sobre estas questões, não houve retorno.
O Brasil de Fato também pediu um posicionamento à Prefeitura Municipal de Santo Agostinho (PE) sobre as ações que vem desenvolvendo para garantir a instalação de luz elétrica, água, e saneamento básico ao Sítio Areal, mas não obteve retorno.
Fonte: Brasil de Fato PE, por Pedro Stropasolas