Valentina nunca viu uma pessoa morrer de Aids. Não teve tempo de ser fã do Cazuza, tampouco ouviu falar do Betinho e sua campanha contra a fome nem assistiu aos filmes do Rock Hudson. Quando ela nasceu, nos anos 2000, as propagandas na televisão e nos pontos de ônibus já anunciavam que “a vida podia ser positiva com ou sem Aids”, mostrando como era possível viver bem com HIV. Quando fez seu primeiro ‘exame de sangue’, o uso de seringas descartáveis já era parte da rotina dos serviços de saúde e, embora ela provavelmente nem saiba, caso tivesse precisado de transfusão ou hemodiálise, encontraria bancos de sangue com um controle sanitário muito mais rígido do que aqueles que levaram a tantas contaminações nos anos 1980. Com vida sexual ativa, Valentina nem sequer se lembra da última campanha pública que lhe fez pensar sobre o uso do preservativo. Como tem mais medo de uma gravidez precoce do que de contrair Aids, a pílula anticoncepcional faz mais parte da sua vida do que a camisinha.
Ao contrário da personagem que abre esta reportagem, Jefferson Campos é uma pessoa real. Hoje com 30 anos, ele recebeu o diagnóstico de HIV positivo em 2018, quando tinha 27. Cientista social com atuação na área da saúde, ele considera que era muito bem informado sobre o assunto, tanto que fazia testes periódicos – o que permitiu que descobrisse a infecção logo no começo – e, na maioria das vezes, usava preservativo nas relações sexuais. Campos diz que sua geração chegou a pegar algumas campanhas mais fortes de prevenção à Aids, mas ele percebia que os parceiros mais jovens – na casa dos 20 anos – tinham uma atitude “mais frouxa” em relação à prevenção. “Quando o parceiro era da minha faixa etária, não tinha discussão, [o preservativo] estava ali. Se eu não demandasse, ele iria demandar o uso da proteção. Já com uma galera mais jovem, essa demanda não vinha”, relata.
A sobreposição dessas duas histórias serve para mostrar que, na verdade, Valentina não é apenas uma personagem fictícia: ela é uma tentativa de concentrar em um único nome características que os entrevistados desta reportagem reconhecem em boa parte da geração mais jovem, herdeira do sucesso que a ciência mundial e a política brasileira conquistaram no combate à Aids. Trata-se de uma parcela da população que nunca teve contato com a sentença de morte que a contaminação pelo HIV significou durante muito tempo. Adicionalmente, vive num contexto em que a ‘perna’ da prevenção, que sempre foi parte fundamental da Política Nacional de Aids, anda enfraquecida, com poucas campanhas e trabalhos de base, contribuindo para um cenário de profunda desinformação. “A gente trabalhava a questão de prevenção e da promoção da saúde muito mais do que se faz hoje em dia. Há uma deterioração da área de prevenção do HIV e das doenças sexualmente transmissíveis [DSTs]”, lamenta a infectologista Nemora Barcellos, professora da Unisinos e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
O fato é que esse retrato da juventude em relação à Aids pode parecer confortável diante da real queda na taxa de mortalidade da doença, mas talvez essa seja uma análise superficial. Primeiro porque, como vários testemunhos nesta reportagem vão mostrar, não é indiferente viver com ou sem HIV. Segundo porque, dependendo da classe social e das condições de vida das muitas Valentinas que existem por esse país afora, o risco de morte não deixou de existir.
Viver com HIV
“No início a gente só tinha o AZT e o DDI, que era uma bola redonda enorme. Eu tive muito problema com a adesão, no princípio, porque os tratamentos causavam muitos efeitos colaterais: diarreias, o AZT deixava a pele das pessoas escura... Eu cheguei, numa época, a tomar 21 comprimidos por dia! Tinha comprimido para impedir que o HIV entrasse na célula, outro para impedir que ele se reproduzisse, outro para impedir que circulasse no sangue... Era uma loucura”. O relato é de Silvia Almeida, soropositiva há quase 28 anos. Hoje sua prescrição é de quatro comprimidos diários – uma exceção, que se deve ao fato de ela estar na chamada terapia de resgate. “O organismo pode se acostumar com a medicação e o HIV, por ser um vírus mutante, vai burlando, achando formas de se defender daquele medicamento. Mas isso vai muito também da questão da adesão: quanto mais você não tem adesão [ao tratamento], mais vai tendo brechas para que o vírus se proteja daquele medicamento”, explica.
No que diz respeito à adaptação do vírus à medicação, Marcelo Soares, pesquisador em Aids que trabalha no Instituto Nacional do Câncer (Inca), ressalta que esse é um problema típico das pessoas que desenvolveram a doença há mais tempo, no começo da pandemia de Aids. “O HIV, de fato, muda muito. Como ele se replica rapidamente, da mesma forma que se torna resistente a uma resposta imunológica do próprio indivíduo ou a uma eventual vacina, ele também se torna resistente aos medicamentos”, confirma. Mas pondera: “Com as drogas que são utilizadas hoje, para o vírus se tornar resistente, ele precisa acumular oito, nove mutações diferentes juntas, o que é difícil”. O pesquisador explica que a medicação continua “atacando o vírus em pontos diferentes das suas etapas de multiplicação”, mas, diferente do tratamento que fez Silvia Almeida tomar mais de 20 comprimidos na década de 1990, hoje esse coquetel normalmente é concentrado em uma única pílula.
De fato, com o desenvolvimento científico e tecnológico que levou à produção de medicamentos eficazes, sem efeitos colaterais imediatos e com uma administração mais simples, a capacidade de viver com HIV se tornou realidade. E não parou por aí: na continuidade das pesquisas, descobriu-se que o uso de medicamentos desde o momento do diagnóstico, sem precisar esperar o desenvolvimento da doença, era capaz de reduzir a carga viral a ponto de ela se tornar indetectável. Daí surgiu a fórmula que transformou (para melhor) a vida social e afetiva das pessoas soropositivas: I=I (i é igual a i), o que significa que a carga viral indetectável é também intransmissível, ou seja, quem está nessa condição não repassa o HIV para outras pessoas. Isso porque, como explica Soares, os antirretrovirais conseguem conter a reprodução do vírus de modo que ele não possa chegar às partes “periféricas” do corpo, como sangue e sêmen. “É seguro. Já existe muita evidência científica. I é igual a I com certeza, não há mais nenhuma sombra de dúvida”, garante.
O impacto dessa mudança na vida das pessoas soropositivas varia. Jefferson Campos relata que, embora não se sentisse na obrigação de informar sobre a sua soropositividade para os parceiros, já que, estando indetectável, ele não colocava ninguém em risco, muitas vezes decidiu contar a sua história, sobretudo nas relações com pessoas mais jovens, como forma de conscientizar sobre a importância da proteção. E ele diz que nunca houve uma desistência ou um afastamento em função dessa informação. “Depois que a pessoa entendia [o I=I], a coisa fluía, não se tornava um obstáculo”, garante. Essa, no entanto, não é propriamente a regra – e talvez aqui também haja um corte geracional. Para Eduardo Barbosa, por exemplo, as coisas ainda são mais conflituosas. Ele contraiu o HIV no final da década de 1980 e teve a confirmação em 1994. “Quando eu descobri [o diagnóstico], fiquei uns quatro a cinco anos sem me relacionar com ninguém, sem ter relação sexual, morrendo de medo de transmitir. No momento presente isso é um misto, que vem e volta na cabeça da gente o tempo inteiro”, relata. E completa: “Contar ou não é uma coisa ainda muito difícil. Na comunidade LGBT, a rejeição ainda é muito forte. À medida que você conta que tem HIV, mesmo que fale que é indetectável, vem o bloqueio. As pessoas têm informação, mas isso não mudou o comportamento”.
Para Paulo Giacomini, jornalista e militante do movimento de Aids, que vive com o vírus há mais de três décadas, essa transição, depois de tantos anos com medo de contaminar as pessoas que se aproximavam, também não foi nada fácil. Ele relata que, hoje, sente desejo sexual e tem ereções sem qualquer dificuldade do ponto de vista físico, mas basta a relação começar a se concretizar e vir o “toque” para que não consiga ir adiante. “Isso não é físico, é psicológico”, analisa, associando diretamente à sua condição de soropositivo.
As exigências do tratamento e a cura que ainda não veio
Mesmo nos muitos casos em que a fórmula I=I tem proporcionado situações mais felizes, é preciso não perder de vista que ela não é sinônimo de cura nem de eliminação do vírus do organismo: o HIV continua armazenado em células que funcionam como uma espécie de “reservatório”, principalmente, no sistema nervoso central. “O HIV infecta e insere o seu material genético dentro desses reservatórios anatômicos. E eles são refratários, inclusive, às drogas antirretrovirais, não são atingidos pela terapia. O vírus se insere no genoma das nossas células: essa é a grande estratégia do HIV que faz com que a gente não consiga se livrar dele”, explica Soares.
Por isso, se o tratamento for interrompido, esses vírus ‘escondidos’ se multiplicam rapidamente e voltam a circular pela corrente sanguínea e outras partes do corpo, tornando-se novamente detectável e transmissível. Além disso, enquanto uma pessoa soropositiva em tratamento contínuo não chega a desenvolver a doença, o aumento da carga viral é um caminho aberto para o surgimento das infecções oportunistas que passam a atingir o corpo quando a Aids ataca o seu sistema imunológico. Mesmo com todo o progresso científico e tecnológico nessa área, portanto, a Aids continua não tendo cura e a prevenção e a vigilância precisam ser constantes.
E, por mais estranho que possa parecer, situações que levam a ‘baixar a guarda’ são mais comuns do que se imagina. “Tomar remédio a vida inteira, todos os dias da vida, também não é fácil”, testemunha Silvia Almeida. Eduardo Barbosa viveu essa experiência recentemente, no contexto da pandemia de Covid-19. “Foi bastante desgastante para mim. Foi um período em que eu fiquei pensando na minha própria vida. E, mesmo com toda a consciência que eu tenho, com todo o meu trabalho de ativista militante, com a experiência de ter sido diretor de departamento de HIV/Aids, membro de ONG, eu relaxei com o meu acompanhamento. Teve momentos em que me vi com depressão: eu não queria tomar medicação nenhuma. Pela primeira vez na minha vida, desde que a gente instituiu [o tratamento como antídoto], fiz um exame de carga viral e deu 790 cópias”, conta, relatando o espanto de, depois de 15 anos, deixar de ser indetectável. “Se você tira o tratamento, esse pouquinho de células que está produzindo vírus começa a se replicar em níveis astronômicos. São milhões de partículas virais geradas por dia em um indivíduo infectado que não esteja sob tratamento. Rapidamente você atinge a carga viral de novo em poucas semanas”, explica Soares. Com a retomada do tratamento, como ocorreu com Barbosa, a carga viral volta a diminuir, também de forma veloz. Para ser indetectável, a pessoa precisa ter menos de 40 cópias de vírus por mililitro de sangue no corpo.
Embora não tenham efeitos colaterais imediatos, como os que tornavam o quadro de infecção por HIV muito mais doloroso no início da pandemia, os medicamentos administrados hoje também demandam cuidados de curto a longo prazo. Uma das consequências possíveis é uma perda óssea mais acelerada. “Eu tenho uma preocupação maior de ter uma prática diária de exercício físico. Isso colocou para mim a necessidade de tomar mais consciência sobre o cuidado com o meu corpo”, descreve Campos. Para quem experimentou as versões mais antigas dos remédios e se mantém em tratamento até hoje, as consequências são mais evidentes: numa cirurgia odontológica recente, Eduardo Barbosa perdeu os dentes superiores e tem dificuldade de fazer um implante dentário em função exatamente da perda óssea. “Por mais que a gente tenha hoje todo um arsenal de medicamentos e exames, que melhoram um pouco a qualidade de vida, a gente tem muitas sequelas”, relata.
E as eventuais dificuldades que podem surgir em relação ao tratamento não são só individuais. Embora ainda não haja dados sistematizados, pesquisadores e militantes da área suspeitam que o efeito da crise sanitária atual sobre o tratamento de HIV/Aids pode não ter se dado apenas em situações isoladas, como a de Eduardo Barbosa. “Temos fontes que relatam impactos complicados da pandemia de Covid-19 sobre a Aids”, diz Veriano Terto Júnior, vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), citando, como exemplos, casos de atrasos em consultas e resultados de diagnóstico, além da redução do número de testes. “O atraso significa afastamento das pessoas do sistema de saúde. Ter perda de pessoas no sistema e abandono de tratamento pode ser um efeito que a [pandemia de] Covid-19 traga, gerando um aumento nos casos e mortalidade de Aids no Brasil”, alerta.
A clareza de que não apenas a qualidade de vida como a própria sobrevivência depende de políticas públicas sobre as quais não se tem total controle é um fio condutor da experiência de quem vive com HIV. Essa foi, de alguma forma, a motivação da organização de movimentos sociais de pessoas soropositivas que, desde o final da década de 1980, passaram a pressionar, acompanhar e mesmo ajudar a executar a política de Aids. E, ainda hoje, esse sentimento pauta as trajetórias individuais. “Só o que me assusta é não ter acesso ao meu medicamento. Porque é isso que me dá tranquilidade de seguir vivendo, de que não vou ter nenhuma complicação em função do HIV”, diz Jefferson Campos. Ele conta que, pelo grau de informação que sempre teve, desde que recebeu o diagnóstico do HIV, nunca sentiu medo de morrer. Sabia que tinha direito a um tratamento que é cientificamente seguro e capaz de lhe permitir uma vida sem maiores riscos em função da Aids, mas sempre soube também que isso dependia da disponibilidade contínua das medicações que, se não fossem garantidas pelo Estado, seriam impagáveis para ele e para a maior parte da população. Campos reconhece que um direito já consolidado e garantido em lei é mais difícil de ser retirado, mas o momento da conjuntura nacional não lhe inspira segurança. “A gente passou a ter uma instabilidade política no país, beirando o contexto do autoritarismo, e a visão histórica nos permite saber que determinados direitos, mesmo conquistados, podem ser desfeitos”, afirma.
Com uma experiência pouco traumática – tratamento sem efeitos colaterais, acolhimento da família e amigos e nenhum caso de preconceito explícito em função da sua condição de soropositivo –, Campos diz que, no geral, sua tendência é esquecer o HIV e “seguir a vida”. “Eu casei, somos sorodiscordantes [quando o parceiro não tem o vírus da Aids], queremos ter nossos filhos, temos projeto profissional e acadêmico. Nesse sentido, a vida segue normal. Mas eu tenho o pavor de que, por alguma instabilidade política, meu direito ao medicamento possa estar ameaçado”, reforça. Além disso, diz, os projetos de futuro também dependem de estratégias que não podem desconsiderar a existência do HIV. Ele se deparou com essa questão recentemente, quando começou a planejar um doutorado no exterior. “Todos os lugares que eu pude pesquisar como possibilidade de vida acadêmica fora do país não têm acesso gratuito ao medicamento [de HIV]”, diz. E questiona: “Eu estou tranquilo porque tenho acesso ao meu tratamento. E se deixar de ter?”.
Nessa busca, ele se deu conta ainda de outro problema: países que impõem restrições à entrada de pessoas soropositivas. De acordo com um relatório da Unaids, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids, em 2019, 11 “países, territórios e áreas”, entre eles Ucrânia e Indonésia, exigiam testes ou divulgação de estado sorológico de pessoas com HIV, baseando-se nesses resultados para proibir a permanência de curta ou longa duração. Outros 18, como Angola, Austrália, Cuba e Israel, impunham restrições de entrada, permanência ou residência, seguindo os mesmos critérios. Um terceiro grupo, que englobava 19 nações, se permitia deportar estrangeiros em função do HIV – aqui, Egito, Síria e Rússia são alguns exemplos.
E os entrevistados desta reportagem que vivem com HIV há muito tempo testemunham que essas barreiras não são apenas geográficas. “Hoje, se cuidando, você não precisa adoecer, não precisa desenvolver Aids, se fizer o seu tratamento com adesão normal. Tudo isso evoluiu. Mas a questão da discriminação e do estigma parece que ainda está paralisada lá atrás, há 40 anos”, resume Silvia Almeida. Giacomini concorda: “Eu vejo jovens de 23, 25 anos que não viveram os anos 1980, mas que, quando recebem o diagnóstico, se remetem diretamente àquela cara da Aids que as pessoas tinham quando o Cazuza foi exposto na capa da Veja. O discurso de que se pegar não tem nada é diferente do impacto. E o impacto do diagnóstico ainda é o mesmo porque o estigma, o preconceito e a discriminação com as pessoas vivendo com HIV ainda são os mesmos”. Exatamente por isso, segundo Eduardo Barbosa, a primeira bandeira de luta do movimento de Aids que sobrevive nos dias de hoje continua ser contra esse cenário. “O estigma ainda é muito forte”, reforça.
Nem todos têm tratamento
Ao longo dessas quatro décadas, mais de 30 milhões de pessoas morreram de Aids no mundo e, ainda hoje, de acordo com Marcelo Soares, não existe um único país que não tenha casos da doença. De acordo com as Estimativas Globais de Saúde de 2019, produzidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), apesar do destaque para o crescimento dos problemas crônicos, como cardiopatias e diabetes, naquele ano a Aids ainda ocupava o 9º lugar no ranking das doenças que mais matam no mundo. Segundo Terto Júnior, calcula-se, “numa perspectiva conservadora”, que cerca de 12 milhões de pessoas contaminadas não têm acesso a medicamentos. “Isso significa que elas vão adoecer e morrer de Aids”, lamenta – mesmo com todo o desenvolvimento científico e tecnológico pelo qual esse campo passou.
Também no Brasil, apesar de uma redução muito significativa, ainda se morre de Aids. Em 2019, último ano de que se tem dados oficiais concluídos, 10,5 mil óbitos foram registrados tendo a doença como causa básica. Se comparado à mortalidade que seguiu uma curva crescente até o começo do tratamento com antirretrovirais, em 1996, a queda é substantiva. O trauma da tragédia sanitária gerada pela pandemia atual – que, até o fechamento desta reportagem, tinha matado mais de 607 mil brasileiros – também pode fazer esse número parecer pequeno. “O HIV mata muito mais devagar, gera uma doença de ação e desenvolvimento prolongados”, distingue Marcelo Soares, que compara: “Já morreu quase dez vezes mais pessoas de HIV do que de Covid-19 no mundo até hoje e ainda vai continuar morrendo muita gente de HIV depois de a gente ter controlado a Covid”. É verdade que, especificamente no caso do Brasil, hoje essa relação é invertida: em 20 meses morreu pelo novo coronavírus quase o dobro da quantidade de pessoas que vieram a óbito de Aids em 40 anos (pouco menos de 350 mil), o que, além de expressar a diferença de velocidade de ação das duas doenças, talvez reflita também a forma distinta como as duas pandemias foram enfrentadas no país.
Os parâmetros, portanto, precisam ser outros, principalmente a análise do que justifica a permanência da mortalidade por uma doença que, apesar de não ter cura, hoje é perfeitamente tratável. “Temos uma média de 27 a 30 pessoas morrendo de Aids diariamente no Brasil”, alerta Veriano Terto Júnior, que completa: “Isso dá a dimensão de que esse ainda é um problema grave de saúde pública”. De acordo com o Sistema de Mortalidade do DataSUS, no bloco das doenças infecciosas e parasitárias, o HIV foi o responsável pela causa específica do maior número de mortes em 2020, com mais do que o dobro de óbitos da segunda causa – os dados, claro, ainda não contabilizam a Covid-19.
Uma das chaves para entender esse cenário talvez seja a mudança do perfil epidemiológico que a doença sofreu ao longo desses anos, não apenas aqui: diferente da imagem povoada por artistas e gente das classes altas da década de 1980, hoje a Aids atinge principalmente grupos e populações vulneráveis. Na verdade, segundo Terto Júnior, mesmo naquela época essa era mais uma imagem midiática do que um retrato da realidade. Por isso, levar o tratamento a todos os soropositivos e interromper os óbitos pela doença ainda são desafios no mundo e no Brasil. “As preocupações se deslocaram, mas persistem do ponto de vista do número de infecções, da utilização dos serviços de saúde e da emergência diagnóstica, que permanece em função da alta mortalidade sustentada por diagnósticos tardios”, resume Nemora Barcellos. Sobretudo depois do protocolo que determina o início do tratamento logo após o diagnóstico – o que, no Brasil, aconteceu em 2013 –, identificar a contaminação pelo HIV o mais rápido possível é fundamental para reduzir o risco e garantir uma vida melhor. Aliás, tal como os medicamentos, os testes para detecção de HIV também evoluíram muito e, além de estarem disponíveis nas unidades de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), alguns fornecem o resultado na hora.
Hoje os números mais preocupantes dessa epidemia no Brasil recaem novamente sobre os homossexuais masculinos, classificados como HSH, homens que fazem sexo com homens. Mas nem de longe essa trajetória foi uma linha reta. Afinal, no Brasil e no mundo, o perfil epidemiológico da Aids sofreu muitas mudanças, chegando, em alguns momentos, a escancarar os riscos que cercavam famílias heterossexuais e eram escondidos pelo preconceito: houve períodos em que mulheres casadas, em relacionamentos monogâmicos, foram focos principais de campanhas de informação sobre a doença, porque os números mostravam que elas estavam crescentemente sendo contaminadas pelos maridos que contraíam o vírus em relacionamentos extraconjugais. De acordo com o boletim epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde publicado em dezembro do ano passado, em 2019 apenas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste as relações homo e bissexuais foram responsáveis pela maioria das contaminações. Em todas as outras, ainda que com uma vantagem muito pequena, prevaleceram as transmissões pelas relações hetero. No consolidado nacional, no entanto, o crescimento maior se dá entre HSH: dados de 2018 mostravam que as infecções por HIV cresciam nesse segmento, atingindo 18,4%, uma proporção 46 vezes maior do que na população em geral.
Outros elementos ajudam a montar esse perfil: entre 2009 e 2019, também segundo o boletim do Ministério da Saúde, houve uma queda de 51% na proporção de casos entre pessoas brancas, enquanto, entre as negras, a diminuição foi de 36,4% e 17,6% entre as pardas. A faixa etária de 20 a 34 anos concentrou 52,7% dos casos entre 2007 e junho de 2020. Tanto o número de infecções quanto o de óbitos continuam mais altos no Sudeste, mas as diferenças regionais apontam uma maior mortalidade no Norte e Nordeste: enquanto a taxa de pessoas mortas por Aids no Brasil caiu de 5,8 para 4,1 por 100 mil habitantes entre 2009 e 2019, os estados do Acre, Pará, Amapá, Maranhão, Rio Grande do Norte e Paraíba tiveram aumento desses coeficientes. O boletim do Ministério da Saúde destaca os casos do Acre, que dobrou esse número de 1,1 para 2,2 óbitos por 100 mil habitantes e, principalmente, o do Amapá, que subiu de 0,6 para 5,8. “Hoje em dia a Aids é caracterizada por [atingir] pessoas mais pobres, populações mais vulneráveis econômica e socialmente. Ela afeta mais negros do que brancos, como qualquer problema de saúde pública. E tem o agravante das identidades e comunidades sexuais, como populações de trans e prostitutas, que são muito impactadas pela Aids e têm um outro tipo de vulnerabilidade, pelos estigmas relacionados à sexualidade”, resume Terto Junior.
Em relação à desigualdade regional, uma exceção que persiste nesse cenário é o Rio Grande do Sul. Numa tabela que lista a situação do HIV/Aids nas cidades com mais de 100 mil habitantes, a partir dos indicadores de taxa de detecção, mortalidade e primeira contagem de CD4 (células que vão sendo eliminadas pelo HIV e que, quando muito reduzidas, indicam que o diagnóstico não foi precoce), o boletim de 2020 do Ministério da Saúde mostra que seis dos 20 municípios com pior situação no ranking pertencem ao Rio Grande do Sul – de acordo com Nemora Barcellos, quase um quarto dos diagnósticos no estado identificam pessoas com CD4 inferior a 200, o que significa um estágio avançado da doença, que dificulta o tratamento. Também na hierarquia das capitais, Porto Alegre só está em situação mais desfavorável do que Belém. “No Brasil você tem diferentes epidemias. Tem uma epidemia que cresce no Norte, uma epidemia que nunca se reduziu na região Sul, duas regiões onde se mantém uma mortalidade persistente”, resume.
Desafios da assistência
Tudo isso apesar do sucesso da Política brasileira de combate à Aids. E as razões são várias. Por um lado, Barcellos analisa que os serviços de saúde “ainda não são ideais” para o acompanhamento das pessoas soropositivas. Sem negar a importância da descentralização promovida pelo SUS, ela explica que a vantagem de se ter uma atenção básica territorializada, próxima da realidade do usuário, pode se tornar um obstáculo quando se trata de um diagnóstico de HIV. “A assistência se aproxima do indivíduo, mas isso tem alguns aspectos que não são totalmente favoráveis, principalmente pelo medo de ser reconhecido pela doença mais próximo de sua casa”, explica Barcellos.
A preparação do sistema para uma efetiva articulação entre a atenção básica e as média e alta complexidade, além da relação indissociável entre prevenção e assistência, são outros desafios que o SUS enfrenta para garantir uma melhor qualidade de vida aos pacientes de HIV/Aids – a socióloga Cristina Camara lembra, inclusive, que esse deveria ter sido um aprendizado para a pandemia de Covid-19, que enfrentou problema semelhante com a falta de leitos de internação, por exemplo. “As pessoas eram infectadas, adoeciam e morriam rápido, então você tinha que ter um contínuo do acompanhamento disso”, explica Camara, referindo-se à pandemia de Aids. Eduardo Barbosa aponta um aspecto complementar: muitos que, como ele, sobreviveram à infecção tendo vivido a pior fase da epidemia, hoje demandam maior atenção especializada. “Eu preciso de otorrino, de oftalmo, de nutricionista, de endocrinologista... O SUS é o meu ‘plano de saúde’. E a falta de profissionais de saúde, a terceirização e precarização dos serviços são dificultadores”, diz.
Desinformação e conservadorismo
Para além (e antes) da assistência, outra “barreira” que Barcellos identifica ao controle da Aids no Brasil hoje é o conservadorismo. “A iniciação sexual é muito mais precoce nas populações menos favorecidas, onde ainda há a cultura de que ter um filho é o que te faz adulta. Então, você teria que começar a trabalhar questões de sexualidade com dez anos pelo menos”, defende, apontando a importância da educação sexual nas escolas e outros espaços. “Mas o conservadorismo trabalha num outro sentido, ele argumenta que se você não fala você não estimula [no caso, o sexo], o que é uma inverdade absoluta”, completa.
Terto Junior concorda: “O conservadorismo crescente é um obstáculo principalmente para a prevenção, mas em certa medida também para o tratamento porque afasta as pessoas de procurarem ajuda. Atualmente, a Aids é uma doença basicamente de transmissão sexual. Num país onde a sexualidade tende a ser apagada das agendas institucionais e de governo, isso tem consequência para a transmissão. Sem poder falar sobre sexualidade a gente avança pouco”, opina, reforçando que esse é um obstáculo também para o controle da sífilis e outras DSTs. “Todo esse contexto conservador impede que se fale sobre saúde sexual e reprodutiva em escolas, na mídia, em vários locais”, diz. E lamenta: “Isso estimula a ignorância e quem paga são as pessoas mais vulneráveis. Quem vai ter a gravidez indesejada muitas vezes são meninas que já vêm de uma geração de outras mulheres que também tiveram gravidez indesejada e precoce”.
Eduardo Barbosa também ressalta que esse cenário tem se agravado muito, mas ele alerta que a concessão ao conservadorismo já tinha começado a atravessar a política de Aids há mais tempo. E, nesse caso, seu testemunho é como ex-diretor do departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde no período de 2005 a 2013, onde, “em nome da governabilidade”, ele diz ter vivenciado situações de censura a materiais de campanha – voltados para prostitutas e público LGBT – ainda no governo Dilma Rousseff. Barbosa também relata que foi chamado a se explicar no Congresso Nacional sobre uma cartilha que tematizava a redução de danos para usuários de drogas e apresentava ilustração de uma relação sexual. “Eu sempre acreditei no tripé ‘assistência, prevenção e direitos humanos’ [para o combate à Aids]. Mas faz um tempo já que a gente descaracterizou essa parte dos direitos humanos”, lamenta.
No caso específico da Aids, o vice-presidente da Abia destaca ainda o quanto esse contexto impede que as pessoas saibam que existem outras formas de prevenção além do preservativo. Ele se refere principalmente à Prep, sigla para Profilaxia Pré-Exposição, que consiste em pessoas que não têm o HIV tomarem, preventivamente, uma combinação de duas das drogas usadas no tratamento dos soropositivos. “É como se fosse uma barreira porque, como você já está com a droga no organismo, na hora em que o vírus tenta invadir, as chances de ele ser neutralizado são altíssimas”, explica Soares. Como parte da política brasileira de Aids, os medicamentos da Prep também são fornecidos pelo SUS. “Tem que discutir com esses jovens que existem outros métodos [de prevenção] para que eles sejam mais autônomos. Mas o ideal seria que essas escolhas fossem melhor informadas, fossem escolhas mais conscientes. E não é o que a gente tem visto”, resume.
Fonte: Brasil de Fato