Despertar, uma crônica sobre racismo e pertencimento



Despertar, uma crônica sobre racismo e pertencimento

Por Ana Karine Gonçalves dos Santos*

Esta noite eu tive um sonho muito real. Eu estava em uma festa de uma grande amiga a quem estimo muito e que sei que me ama e respeita.

A festa era algo íntimo, mas, ainda assim, chegavam mais e mais parentes seus e de seu marido. O lugar era grande e a festa era campal. De repente ela me avisa que vai buscar uns familiares no aeroporto. Me sento, e mais familiares com aqueles grandes olhos verdes falam comigo, felizes. Eu estou feliz, mas algo me incomoda e eu espero mais amigos da faculdade… O medo da pandemia me perpassa. Respiro.

Uma garota jovem, bem jovem, negra, cabelo quimicamente tratado senta perto de mim, timidamente, mas fala com uma tranquilidade, como se fossemos próximas:

_ “Ô mulher, tu num quer ajudar a gente não? (Olha pra o local e os convidados). É só uma ajuda. A gente combinou e cada um dá um pouquinho e te paga – percebi que se referia a outras funcionárias – É muita gente e não vamos dar conta não.”

Eu senti como um sacolejo. Intuí que ela achava que eu, para estar ali, era babá ou mesmo uma convidada de “consideração”, que era como chamavam, e às vezes chamam, as meninas negras acolhidas? Adotadas? por famílias brancas para fazer o serviço doméstico ou cuidar das crianças. Algo muito comum aqui no Nordeste. O sacode foi por eu ter entendido tudo isso que estava no não-dito. Eu não sabia como responder. Era constrangedor dizer a verdade impensável. Verdade? Não respondi.

Daquele momento em diante o incômodo tornou-se realmente um pesadelo: eu me sentia inadequada e percebia o abismo. Todos que estavam lá, agora vestiam roupas de festa e eu brinquei: “não tenho roupa pra esse evento”. Imediatamente eu carregava uma imensa mochila roxa, pesadíssima. Comecei a querer ir tomar banho e me trocar. Estava perto da casa, mas ao pensar em sair, eu temia. Era terrível. – Se eu sair, será que me deixam voltar?

Uma vez eu tive de dizer o andar, número do quarto e descrever o corredor de acesso ao local onde meu sobrinho estava interno. Era um hospital particular e dizer o nome do paciente não convenceu o porteiro de que eu era da família. E um dia desses, ao ir me vacinar em um local específico para profissionais de saúde fui questionada se eu era apenas acompanhante da amiga ao meu lado ou se deveria me entregar a ficha. Ela não foi questionada e recebeu automaticamente o papel com seu lugar na fila, antes de mim, apesar de termos entrado juntas.

No sonho, só saí para me trocar quando um amigo topou ir comigo. Saímos e ao passar pela mesa uma senhora que trabalhava me olhou com cumplicidade. Sorri pra ela e fui ainda sentindo medo e o peso da mochila roxa.

Ao passar pelo portão percebi que estava no meu bairro de origem e bem perto de casa. Seguimos a pé e cheguei na minha rua como sempre foi: os vizinhos conhecidos, gente na rua, todo mundo se falando com presença e interesse. Me olhavam com estranhamento, queriam saber o que eu fazia ali. “Vim em casa trocar de roupa” e mentalmente pensava em que roupa iria me fazer sentir pertencente àquela festa. A mochila enorme, que antes pesava horrores, já nem era sentida, mas estava lá. Falei com meu irmão. Cheguei na casa e passei as mãos no bolso. Descobri o que todos ali já haviam percebido: eu não tenho a chave. Não tenho a chave?!

Quando criança meu pai dizia que o estudo era tudo que ele podia nos dar. Que era preciso estudar para mudar de vida. E lá estava eu, me vendo representada naqueles olhos como algo que eu não sou: e no meu lugar de origem, as pessoas não me reconhecem como fazendo parte. É como se, ao me graduar, mudar de endereço, deixo de ser mulher preta e periférica. Como é difícil estar no não-lugar. Mudei de vida. Será?

Olhei para o portão de minha casa matriz, onde cresci e me constituí e o coração dá um salto. Tanto conflito, tanta confusão… A chave não está comigo. Mas não há tranca que me afaste de quem sou: aquele portão de ferro estava entreaberto. Senti que a chave sou eu.

Durante as últimas semanas tenho estado angustiada. A verdade incômoda foi sendo vista a partir daquela brecha.

Ultimamente tenho ido ao mercado e percebo que o número de pessoas pedintes e em situação de rua só aumenta. A cada semana mais visível a miséria, sobretudo da população negra. Sábado fui ao banco e no salão dos caixas eletrônicos, bem no centro, havia uma mulher negra com seu bebê no colo. A criança queria dormir, mas estava naquela fase em que tudo chama atenção e o passa-passa de pessoas e vozes não permitiam o sono. A mãe repetia “me dê uma ajudinha moço/moça. Pra completar um almoço, qualquer ajuda serve…” E repetia entoando no ritmo de uma canção de ninar enquanto embalava o filho. Doeu.

Outro dia, crianças remexiam o lixo em busca de recicláveis. Muito queimadas do sol. Sobre a carroça de burro estava uma mulher negra, magra e visivelmente em puerpério com seu recém-nascido nos braços.

Os tons da guerra escancaram o racismo de lá… E o daqui. Incomoda ver os que choram os desabrigados europeus enquanto relativizam a dor dos povos indígenas e o alarmante número de mortes de jovens negros por “causas externas” no Brasil. Sinto cada realidade: a escancarada e a velada.

Esse portão entreaberto me faz sentir, na minha carne, toda a dor contida na cor da pele. Essa intimidade e cumplicidade é de reconhecimento. Reconhecemos as cicatrizes uns nos outros.

No sonho passou tudo, a foto de volta às aulas na creche, e as redes oficiais publicam a criança loira e com lacinho bem… Bonitinha? … Segue o padrão nas publicidades sobre as vacinas, mesmo tendo maioria da população oficialmente negra ou parda.

Há cerca de um ano eu estava sentada em frente a uma mulher branca, que se coçava: pernas, braços e cabeça até! Naturalmente conversava. Assim como ver alguém rindo te leva a rir, focar em alguém que se coça te leva a sentir coceira. Mas eu não me cocei. E não o fiz por não conseguir me coçar em público. Pensei nas diversas vezes que reprimi esse impulso: “é feio”. E ao olhar mais fundo, era o mesmo medo. Era como se isso fosse parecer sujeira, falta de higiene. Só eu? Isso foi ano passado, gente!

O mesmo medo de abrir a bolsa em lojas. O mesmo de ir a restaurantes. De cobrar direitos. De não ser entendida.

Olhar aquela grade de ferro durante o sono me fez olhar, já não para o não-lugar, mas para os lugares a que pertenço, um de origem e outro de luta diária. Para o curso em saúde com apenas três pessoas negras na turma, das quais só eu graduei em Psicologia. Minha maior vitória: no prazo certo. No mesmo curso, se não me engano, apenas dois professores eram negros.

O aprender a lidar com a ansiedade a cada novo cliente ou parceiro que se surpreende com minha aparência e minha posição. Com o aprender a cuidar do meu cabelo crespo e resistir ao consumismo como forma de validar que pertenço ao local onde estou.

A cena última desse pesadelo, foi de uma mulher, que se retorcia pelo ente morto na Gamboa. A concretização do pior sonho de uma mulher negra periférica: um ente, um filho, na vala, caído, jogado.

Acordei dilacerada e me encolhi na cama. A clareza dolorida me tomava: Eu sobrevivi.

Todo meu estudo, painho, não foi pra mudar de vida. Eu estudo e atuo para mudar a vida.

* Ana Karine Gonçalves dos Santos - Negra, mãe, psicóloga, mestra em Psicologia da Saúde e sócia-fundadora do Espaço Cuidar & Ser, em Campina Grande (PB). Publicado originalmente no Portal Vermelho

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