A dispensa de pareceres jurídicos prévios em contratações bilionárias sem licitação chegou a ser questionada internamente na Cemig, mas a direção da empresa teria determinado ao seu corpo gerencial que ignorasse esse mecanismo de controle. Em vez disso, teria orientado apenas que se fizessem estudos para mudança do Regimento Interno da companhia, que ainda estariam em andamento.
É que o revelam trocas de e-mails obtidas e tornadas públicas na quinta-feira (16/9/21) pelos deputados que integram a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Criada para investigar possíveis irregularidades na gestão e uso político da companhia energética do Estado, ela interrogou desta vez, na condição de testemunha, a gerente de Compras de Materiais e Serviços, Ivna de Sá Machado de Araújo.
Um desses e-mails, lido na reunião da CPI da Cemig pela deputada Beatriz Cerqueira (PT), foi enviado pela depoente aos seus superiores em 11 de maio deste ano, apontando a existência da Instrução Jurídica (IJ) 04, que estabeleceria o fluxo interno para contratações diretas na estatal, ou seja, sem licitação. Esse fluxo partiria da demanda da área contratante com a devida justificativa, depois emissão de parecer prévio pela Diretoria Jurídica e, por fim, elaboração de Proposta de Deliberação a ser aprovada pela Diretoria Executiva e pelo Conselho de Administração.
O questionamento feito por Ivna dizia respeito justamente à dispensa de pareceres jurídicos prévio, que, conforme os depoimentos já prestados à CPI da Cemig, passaram a ser dispensados ou, ainda, emitidos posteriormente às dezenas de contratação suspeitas celebradas pela empresa desde 2019.
Por determinação da Diretoria Jurídica, foi decidido que a análise que permitiria a suposta “inexigibilidade de licitação”, que só pode ser atestada conforme requisitos restritos, já estaria contida na Proposta de Deliberação, que passou a ser emitida diretamente pelo diretor jurídico, Eduardo Soares.
Ivna, que prestou depoimento acompanhada de um advogado da Cemig, confirmou a veracidade do e-mail. “Levantei essa questão e foi feito um plano de ação para revisão do Regimento Interno, que já está em andamento”, respondeu.
Perigo - A depoente foi alertada pelo vice-presidente da CPI, deputado Professor Cleiton (PSB), da gravidade do fato. “A senhora foi vítima de todo um sistema de ilegalidade e poderia ir para a cadeia por ser conivente com a Diretoria Jurídica, que resolveu reescrever as regras do jogo dentro da Cemig. Mas as regras internas não ultrapassam o poder da lei”, criticou.
O parlamentar lembrou que a atual gestão da Cemig criou uma “cortina de fumaça” para justificar contratações suspeitas, violando a Lei das Estatais (13.303, de 2016). “Eles apelaram para a convalidação para formalizar contratos verbais, que depois se transformaram em inexigibilidade de licitação, quando deveria ser o contrário”, explicou.
A convalidação é a regularização de contratações depois dos serviços contratados já terem sido executados, o que deveria ser utilizado somente em situações emergenciais. Mas, segundo o que vem sendo apurado pela CPI da Cemig, essa tem sido uma prática frequente na gestão do diretor-presidente Reynaldo Passanezi Filho.
O relaxamento dos mecanismos de controle também foi criticado pelo relator da CPI da Cemig, deputado Sávio Souza Cruz (MDB), que voltou a classificar como temerária a gestão atual da Cemig. “Eles se acham o dono do boteco e que podem fazer todas as regras, vender na caderneta, fiado ou dar de graça. Mas ainda que isso seja possível, não podem mudar o que ocorreu para trás. Existem leis, regras, manuais, e não me parece que isso foi regular sob qualquer ponto de vista”, apontou.
Governança - Ivna garantiu que sempre agiu dentro da legalidade na Gerência de Compras e minimizou a ausência de pareceres jurídicos prévios, o que, segundo ela, não feriria a legislação em vigor, nem as normas internas da Cemig. “Jamais deixaria passar se tivesse uma ilegalidade. É apenas uma questão de governança. Meu setor apenas juntava todos os documentos, conferia e disparava o contrato para assinaturas”, explicou.
O deputado Roberto Andrade (Avante) minimizou o episódio e pediu aos colegas para que não intimidassem a testemunha. Ele também questionou a depoente sobre a incidência da convalidação nas gestões anteriores da Cemig. “Nossa rotina é o processo licitatório, mas isso sempre aconteceu”, respondeu Ivna.
Com formação em administração e servidora de carreira da Cemig desde 2006, antes de ser nomeada gerente, Ivna também já atuava na área de Suprimentos e Logística. Primeiro, foi analista de compras; em 2016, foi promovida a gerente de Aquisição de Material; e, em 2019, a gerente de Gestao de Imóveis.
Diretor jurídico é o próximo da lista dos depoimentos
O presidente da CPI da Cemig, deputado Cássio Soares (PSD), agendou para a próxima segunda-feira (20) o interrogatório do diretor jurídico da Cemig, Eduardo Soares, personagem central nessa linha de investigação sobre a prática indiscriminada de convalidação para celebrar contratos.
O ex-gerente de Compras de Materiais e Serviços da Cemig, Leandro de Castro, já ouvido pela CPI, admitiu ter sido pressionado pela cúpula da empresa, entre os quais o próprio Eduardo Soares e o diretor-adjunto de Gestão de Pessoas, Hudson Almeida, para executar processos de contratação sem licitação.
Ivna teria substituído Leandro em 8 de janeiro de 2021, data em que foram destituídos, de uma tacada só, diversos outros gerentes da empresa, tanto da área de Suprimentos e Logística quanto da área de Regulação e Jurídica. A devassa seria consequência direta de uma investigação de desvio de materiais e supostos casos de assédio na empresa. Leandro alega inocência e atribui seu afastamento como retaliação por exigir que todas as contratações da estatal seguissem os protocolos regulamentares.
Manobra - Professor Cleiton e Beatriz Cerqueira questionaram, baseados no depoimento de Ivna, se essa investigação não é apenas mais uma tentativa de afastar os gestores de carreira que se opunham a flexibilização dos mecanismos de controle.
Como gerente de Compras, ela sustentou que apenas formalizava os contratos em investigação, que eram demandados e analisados por outras áreas e aprovados, em instância final, pela própria direção da empresa.
O deputado Zé Guilherme (PP) rebateu a hipótese levantada pelos colegas, apontando que, além da investigação interna, há ainda um procedimento do Ministério Público em andamento. “Há, sim, um forte esquema de corrupção na Cemig e o MP não se prestaria a investigar se não fosse real”, apontou.
Fonte: portal da ALMG, foto: Daniel Protzner