No primeiro dia de julgamento do governo Bolsonaro pelo Tribunal Permanente dos Povos, um dos depoimentos de mais impacto foi feito pela presidenta da Federação Nacional dos Enfermeiros, a sergipana Shirley Marshal Díaz Morales. Descendente de povos indígenas dos Andes, com o pai imigrante boliviano e a mãe professora, evangélica, a enfermeira disse que os trabalhadores não morreram por acaso em hospitais e unidades de saúde. “Fomos assassinados”, afirmou.
Assim, segundo seu relato, os profissionais não tiveram formação e capacitação adequadas para lidar com a situação provocada pela pandemia de covid-19, além da falta de equipamentos e, no início, de testagem. Por “falta de coordenação do governo federal”, afirmou Shirley, muitas vezes foi preciso comprar máscaras do próprio bolso. Funcionários, muitos já adoecidos, eram forçados a permanecer no ambiente de trabalho, tendo férias e licenças negadas. “Somos majoritariamente mulheres, mais de 70%, e mulheres negras e pardas, periféricas, que precisam andar de transporte coletivo para se dirigir aos seus locais de trabalho”, acrescentou.
Sem oxigênio
Na condição de presidenta da federação dos enfermeiros, ela contou que teve de viver situações dramáticas. “Precisei me dirigir aos hospitais para poder consolar famílias de trabalhadores que se suicidaram no chão das UTIs”, relatou. “Porque ninguém merece ver o que nós vemos por conta de um desgoverno”, prosseguiu Shirley. Ela lembrou que algumas vezes a categoria chegou a sofrer acusações por causa da falta de oxigênio, que tinha de ser dividido entre pacientes.
Pessoas se debatendo porque não havia medicamento para sedação era uma situação dramaticamente comum – e elas eram atadas às camas. “Precisávamos contê-las. E nós, que defendemos a vida, tínhamos que participar de cenas parecidas com tortura para poder salvar aquelas pessoas.”
Cenas de guerra
Também houve o que ela chamou de “hierarquização da vida”, disse Shirley em seu relato na Faculdade de Direito da USP. Vacina primeiro para os médicos, “se sobrasse” para os enfermeiros e depois para técnicos, auxiliares e outros trabalhadores “invisibilizados”.
“Fomos obrigados a ver cenas de guerra, sem poder trabalhar”, afirmou a sindicalista, criticando a compra pelo governo de produtos como chiclete, leite condensado, “até medicação para impotência sexual masculina”, em vez de medicação. Ela afirmou também que mandou ofícios ao Ministério da Saúde para tentar saber quantos trabalhadores na saúde, de um total de 3,5 milhões no país, morreram “direta ou indiretamente” em consequência da covid.
“O governo tentou omitir esse genocídio, quem eram essas pessoas que estavam sendo mortas, assassinadas. Vencemos as fake news, e não foi fácil”, disse ainda, lamentando as declarações do presidente no sentido contrário ao das medidas de prevenção feitas pelas autoridades de saúde. Ao final, Shirley relatou ter sido ameaçada, “até minha família sendo intimidada”, para não participar do julgamento. “Não é por nós, é por quem não está aqui e pelas famílias das mais de 665 mil pessoas cujas vidas foram ceifadas. Por menos déspotas e líderes mundiais que ceifam vidas de pessoas, de famílias.”
Por Vitor Nuzzi, da RBA