Cutucar insistentemente uma página sangrenta da história do nosso país não me incomoda nem um pouco. Para entender o porquê da necessidade de se resgatar a história dos negros e de todos os povos oprimidos basta olharmos para os dias atuais e associar nossa realidade às realidades de seis ou sete gerações passadas.
Há pouco mais de 100 anos os negros sequer eram considerados cidadãos. Não era crime matar um escravo. Um ser humano de pele negra era comprado em mercados ou trocado por outras mercadorias e animais. Parece absurdo, mas essa era a realidade brasileira. E isso não é, e nunca foi uma lógica natural. Essa é a lógica da dominação, da exploração dos povos, da submissão forçada de uma raça ou classe que nós não podemos perder de vista, omitir, e, muito menos, negar.
Quando aqui chegaram e trouxeram a lógica euro-centrista, com toda sua milenar cultura de dominação imperial, os portugueses e espanhóis massacraram todos os povos da América Latina. Alguns livros são verdadeiras aberrações que lemos nas escolas. Eles afirmam que os índios não foram escravizados por que eram indolentes e resistentes ao trabalho. Na verdade, eles não trabalharam para os portugueses e resistiram à cultura de dominação servil européia por um simples motivo: os índios eram livres.
Pior sorte teve os negros. Não só foram escravizados em suas terras, como eram comercializados mundo a fora como mão de obra servil. Quantos não aportaram nas terras tupiniquins, arrancados de suas tribos, para trabalhar de graça para quem os odiava e mal lhes davam de comer apenas para os manterem vivos, apenas para trabalhar? Quantos já nasceram com o destino marcado para serem objetos de um senhor, que diante do menor vacilo lhes cortavam a carne na chibata? Quantos não viram seus pais e avós serem mortos pelo simples fato de que, quando envelheciam ou adoeciam, não serviam mais para trabalhar? Quantos foram os filhos bastardos, de mães escravas estupradas por seus senhores, que tinham nos próprios pais seus algozes?
Aí veio a “libertação”. A abolição da escravatura. O que iriam fazer os escravos sem terras, sem fábricas, sem dinheiro e sem estudo, pois só sabiam trabalhar para viver? Fora das fazendas, sobraram-lhes os centros urbanos, lugar que não lhes cabiam. As cidades nunca foram espaços de escravos. Suas acomodações eram porões e senzalas, nunca casas. Sobraram-lhes os arredores, a “periferia”, os morros. Nos grandes centros, apenas os euros-descendentes, sangue dos mesmos, que séculos antes chegaram nessas terras e, ”ignorando” seus habitantes, tomaram-na para si.
O que mudou na periferia de ontem e de hoje? O que mudou nos grandes centros? Não era crime matar um negro naquela época. E agora? Os autos de resistência estão aí para mostrar que os homicídios em áreas pobres do Brasil, que na grande maioria sequer são investigados. Foi só mais um preto assassinado, que muito provavelmente tinha algum envolvimento com o tráfico, não é mesmo? Vivendo nas periferias, sob o risco da bala, sem aquele algo que possamos chamar de educação, sem a mínima estrutura para garantir sua saúde, sem qualquer condição adequada que permita que ele chegue à mesma condição de vida dos euros-descendentes. Como podemos mudar esse quadro histórico, para finalmente dizer sem demagogias ou romantismos de classe (por sinal, muito utilizados nos últimos dias) que, de fato, somos todos iguais e o amor deve prevalecer, ao invés da indignação e a revolta de quem sofre como o povo negro, ou pelo menos, tem alguma empatia com sua luta?
Não podemos passar a borracha na história e justificar a realidade atual com a meritocracia furada de sempre. O negro foi escravizado, surrupiado em sua dignidade e isso não se recupera com a assinatura de uma lei. Cultura se muda com a contracultura, com a transformação material da realidade. O povo negro vive um genocídio secular, bem na nossa cara, não é exagero dizer isso, e sim negar isso. A meritocracia branca de hoje foi conquistada sob o fio da chibata de ontem.
Ahh! Sobre as cotas! Estava quase me esquecendo! Algumas pessoas tentam fazer coisas para ajudar os povos explorados a se libertar e mudar sua condição um pouco mais rapidamente. As cotas têm essa intenção. Mas tem gente que, negando a história para garantir sua hegemonia, ou por pura desumanidade, insiste em colocar pedras no caminho.
Jobert Fernando de Paula, diretor do Sindieletro