Contadora de histórias, Dona Jacira teme violência política



Contadora de histórias, Dona Jacira teme violência política

A proximidade das eleições no Brasil tem acirrado os debates e os casos de violência motivados por posições políticas também têm se avolumado. E há quem, inclusive, se sinta acuado diante dos discursos de ódio e das campanhas de mentira que ganham as redes todos os dias.

“Eu penso em outubro e meu coração recua, eu tenho medo. Eu tenho filho, eu tenho netos”, explica Dona Jacira, contadora de histórias que é a convidada desta semana no BDF Entrevista.

“E eu sei porque no Golpe de 1964 eu fui a vítima. Eu estava em período de formação, estava me educando e isso destruiu parte da minha da minha trajetória. E várias crianças vão ser penalizadas por isso, já estão sendo penalizadas”, explica Jacira, sobre a possibilidade de uma tentativa violenta de contestação do resultado das eleições.

Segundo levantamento do Observatório de Violência Política e Eleitoral da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), somente no 1º semestre deste ano, o país teve 214 casos de violência política. O número é 32% maior quando comparado ao mesmo período de 2020, ano em que foram realizadas eleições municipais.

“Eu não sei entender a dimensão da violência comparando com o Golpe de 1964, porque eu não tinha esse olhar. Hoje eu vejo a violência, as pessoas armadas, a ideia de que toda essa violência está certa, toda essa agressão…eu tenho medo e não encontro outra palavra pra isso”, completa Dona Jacira.

Como consequência de uma divisão ideológica do país, desde 2018, artistas e celebridades se viram impelidos a assumir uma posição política. Apesar de não ter sido criada sob uma cultura que, desde o início de sua vida lhe permitisse fazer escolhas políticas, Dona Jacira diz que não se exime do debate público.

“Eu não posso ficar em cima do muro, muito embora tudo isso dê errado, eu tenho uma posição e eu tenho os meus pares, eu sei com quem eu posso contar, eu tenho muito medo de perdê-los. Eu tenho muito medo das perdas, porque cada vez que a gente perde, a gente se enfraquece bastante”, completa.

Mãe dos cantores Emicida e Evandro Fióti, Dona Jacira nasceu e cresceu na Zona Norte da cidade de São Paulo. E até se consagrar como escritora e artista plástica, venceu uma série de desafios que a vida lhe impôs.

Foi enfermeira, mas com a saúde debilitada, teve que abandonar a profissão. “Eu trabalhei muito pouco na área e fiquei doente, justamente pelos sacrifícios que eu tive que fazer pra estudar. Não tinha dinheiro, ou comia ou estudava. Isto precarizou o meu corpo”, diz.

Essa foi uma das chaves que lhe transportaram para um mundo onde Jacira se reconectou às suas raízes e às suas ancestralidades. “Eu tomava muito calmante e fui orientada por um psiquiatra a repensar porque, na verdade, eu não tinha nenhum transtorno grave que fizesse com que eu precisasse tomar calmante. Eu tinha que repensar a vida. A grande questão é que eu ainda não havia estudado diáspora. Estudei sobre alimentação e só alimentação, porque quando a gente não é feito pela academia, começa a estudar a você mesmo”.

Na entrevista, Dona Jacira explica sobre o seu amor pela terra, pela contação de histórias e o orgulho dos filhos. “Eu sempre dizia pra eles que a vida iria dar a resposta. Então, eu não estava errada. E muito embora muitas pessoas dissessem que não era assim que se educava, eu achei que tinha que ser assim e fico muito contente com o resultado. Todo mundo que me fala dos meninos, não só como artistas, mas como pessoas, dizem que são pessoas muito interessantes”.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Queria começar o nosso papo falando sobre a sua trajetória. A senhora foi enfermeira e afirmou que fez isso pra ter uma profissão, mas que sempre seguiu sendo amante dos ofícios da arte. Ainda assim, a senhora se dedicou a estudar a saúde da mulher negra. Como é que surgiu esse interesse?

Dona Jacira: Na verdade, eu queria estudar qualquer coisa e só encontrei esse espaço para a enfermagem, porque também está dentro dos cuidados. E também, na época dos anos 1980, se abriu essa oportunidade por conta da necessidade de formar mais auxiliares, mais pessoas para a enfermagem, que era uma situação precária.

Eu aproveitei essa oportunidade e também precisava entrar no mercado de trabalho. Eu não tinha mais escolha, a arte eu havia abdicado dela por um tempo, achei até que não ia mais tocar no assunto.

Quando você fala sobre a mulher negra, na verdade eu entrei nesse assunto a partir de mim mesma, porque logo que eu me formei, eu trabalhei muito pouco na área e fiquei doente, justamente pelos sacrifícios que eu tive que fazer pra estudar. Não tinha dinheiro, ou comia ou estudava. Isto precarizou o meu corpo.

Então, quando eu perdi a função renal e comecei fazer hemodiálise, eu tive que estudar tudo sobre o que é ser hipertenso e deixar de ser hipertenso. Eu entro aí na questão do movimento revivalista pela alimentação, com todo o envenenamento, o excesso de sal e açúcar que é colocado no nosso corpo.

Eu já tomava muito calmante e fui orientada por um psiquiatra a repensar porque, na verdade, eu não tinha nenhum transtorno grave que fizesse com que eu precisasse tomar calmante. Eu tinha que repensar a vida. A grande questão é que eu ainda não havia estudado diáspora. Estudei sobre alimentação e só alimentação, porque quando a gente não é feito pela academia, começa a estudar a você mesmo.

Antes de dizer que estudei sobre a saúde da mulher negra, eu comecei a estudar sobre mim, sobre a minha vida e vi que o que acontecia comigo era o que acontecia com as minhas irmãs, com a minha mãe, com as mulheres à minha volta. Nós comemos a mesma coisa e adoecemos das mesmas coisas.

Como a senhora falou, o tema da alimentação se torna cada vez mais importante. São vários os estudos alertando sobre a questão dos agrotóxicos, a quantidade de açúcar nos alimentos, nas bebidas. Como a senhora conseguiu fazer essa transição para uma alimentação mais rica?

Leva um tempo, porque a minha primeira consciência foi voltar aqui…a gente quer um progresso e o progresso não está ligado a uma boa alimentação. Por exemplo, eu estou aqui na minha casa, onde minha mãe tinha um galinheiro, uma horta. A minha região era agricultável e tudo isso sumiu.

Nós fomos seduzidos por casas de pizza, por casas de esfiha, pelos rodízios que chegaram nos anos 1990, em São Paulo. Por exemplo, em casa tinha uma regra: arroz, feijão, um pedacinho de bife e uma salada. No rodízio, se você tiver dinheiro, você pode comer o que você quiser, o tanto que você quiser. A questão é que você não tem dinheiro para ir no rodízio trinta dias.

O capitalismo colocou ao lado de cada rodízio uma casa de esfiha a R$ 0,10 centavos. Surge aí uma grande quantidade de pessoas, na verdade, aumenta o número de pessoas com triglicérides, diabetes. Aqui na nossa região quase não tinha pessoas com diabetes.

Eu lembro que quando minha irmã chegou em casa e falou “agora eu tenho triglicérides”, eu pensava, o que é triglicérides? Vinte anos depois, quando a minha irmã já tinha feito cinco revascularizações de miocárdio é que eu comecei a entender o que é isso. É a retirada da gente do nosso lugar, da nossa proteção e a nossa entrada no mercado de trabalho.

Porque antigamente a gente levava marmita, mas também nos foi sendo ensinado pela mídia que é feio levar marmita. Mas a gente, com o que ganha do salário mínimo, não tem como comer uma refeição, um comercial todos os dias. Não dá. E aí você apela pra um pãozinho e o trigo é um fator político.

Ele é super peneirado, então ele não tem mais nutrientes. O trigo e a batata alcançam até o último eleitor miserável, que come uma pipoca ou um miojo pra não passar fome. A gente levou muito tempo pra chegar em todas essas questões porque, a princípio, também tem aquele fator da economia. Você compra aquilo que é mais barato.

E o que é mais barato é o terceiro ato do super processado, não é mais alimento, não é nem congelado e nem é salgado. São aqueles alimentos que não se reconhecem mais, as batatas fritas, essas coisas que a gente tem a mão pra subsistência.

A senhora falou da horta, de como a sua região era agricultável. Hoje a senhora retomou essa ideia do quintal da sua casa como um lugar de cura, de plantio. Como isso se desenvolveu?

Você sabe que eu já tinha me esquecido porque, por exemplo, na minha infância as plantas tinham muita importância pra mim, mas a escola matou isso, como se não tivesse importância. Eu entrei em um estado de depressão tão grande e só quando eu voltei a me entender como contadora de histórias que eu vi que eu gostava de um pezinho de feijão.

Aí eu voltei pro quintal da minha mãe e percebi que não sabia mais como as plantas nasciam. Uma amiga me falou: “faz um curso de jardinagem no Manequinho Lopes”, lá no Ibirapuera. E aí fui aprender o que era terra, uma terra argilosa, o que era uma terra que se planta. Eu me reconectei a partir daí a ideia de plantar.

Entrei para um grupo chamado “Guardiões de Semente” e a ideia era plantar alguma coisa que a gente gostasse e eu gosto muito de morango. Odeio quando chega a época do morango, porque aquela parte debaixo da caixinha vem podre. Falei: “eu vou plantar morango” e alguém me disse que não iria conseguir.

Mas você não planta só morango, tem que plantar uma salsa…e aquilo foi se diversificando. Eu tinha só um vasinho aqui embaixo e o meu jardim foi crescendo, mas ele se estendeu agora no isolamento porque eu tive uma suspeita de trombose. Daí o vascular me falou que eu precisava fazer caminhada e eu não gosto de fazer caminhada. Eu não gosto de caminhar à toa.

Como minha casa tem três andares, eu espalhei os canteiros pela casa, porque aí eu sou obrigada a subir e descer, subir e descer. E foi assim que eu vivi esses últimos anos do isolamento. O canteiro era grande mas ele se estendeu, vou usando as minhas experiências e trazendo para o quintal. Hoje eu tenho uma diversidade de plantas, é uma fazenda.

Vi que a senhora não se reconhecia como uma mulher negra, não tinha essa identidade. Como foi se descobrir negra e o quanto isso lhe transformou?

Aqui na nossa região, a maioria de nós somos negros. Na rua em que eu me criei, tinha uma variedade de estrangeiros, japoneses, espanhóis e portugueses. Mas a quantidade de pessoas negras era maior. Eu sempre fui tida como parda, eu não sabia o que eu era.

E outra, eu não tinha grandes necessidades econômicas. Minha mãe sempre teve dois empregos e sempre imaginava que as pessoas mais negras eram aquelas muito mais pobres, era esse o meu pensamento.

Se eu te disser que tem 17 anos que eu pude constatar que a África existe? Só quando eu comecei fazer o primeiro curso de diáspora, lá no Instituto Cachoeira, é que eu entendi que a África existe. Eu já estava com quarenta anos, sendo descendente. Eu não sou africana, mas sou afro indígena e desconhecia o lugar de onde eu tinha vindo.

A partir daí todas as fichas caem, porque eu fui fazer um curso que era para professores, naquela Lei 10.639 (que determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira no currículo escolar da rede de ensino pública e privada), e eu caí ali de paraqueda. Aliás, fui encaminhada pelo meu psiquiatra, que me disse que eu precisava aprender História.

Então comecei a entender a expulsão da escola, o porquê do mal trato na escola da minha região, porque que não adiantava eu alisar o cabelo. Porque, eu achava que quanto mais eu alisava o cabelo, mais eu não era aceita, mais eu não entendia. Foi quando eu falei “eu sou negra, não adianta eu ficar mascarando. Eu vou ter que entrar nesse grupo e entrar nessa luta”. A primeira coisa que eu fiz foi parar de alisar o cabelo, não vai adiantar, meu cabelo não vai mudar.

E o quanto isso te transformou? Obviamente existe um antes e um depois desse processo todo.

Muito…para você ter uma ideia, se você ouvir a minha música, que eu gravei agora “Não Abusa de Eu” e o meu documentário, existe uma pessoa lá que é o Paulo Dias, que está inserido dentro da minha família. O Paulo Dias é a pessoa que criou a Associação Cachoeira e é essa pessoa que preserva esse lugar. Ele se tornou parte da minha família e a partir dali eu comecei conhecer o Jongo, a Umbigada, as festas do Maranhão, todas essas coisas eu já abordava mas eu nunca tinha visto.

Então foi essa instituição que me mostrou que eu venho de um processo civilizatório e isso me dá um salto espiritual. Eu já havia passado por milhões de igrejas evangélicas procurando uma salvação e quando eu me encontro enquanto uma mulher negra, dentro desse grupo, eu descubro que não houve uma separação, eu não preciso dessa religação. A minha espiritualidade está comigo. E eu falava a partir do bordado, porque a academia não me deu lugar de escrita. Mas eu tinha que ter um jeito de extravasar para não enlouquecer.

No podcast que a senhora desenvolveu durante a pandemia, o “Histórias de Família”, a senhora resgata as memórias como mãe, como trabalhadora e se especializou nesse ofício de contadora. Qual é a importância de não deixar essas histórias morrerem, de levá-las adiante?

Você sabe que eu não me especializei…me avaliando, desde que eu era criança, eu estava aqui sentadinha e ali estava a minha mãe e as outras mulheres contando histórias. Antigamente, a gente não ia pra o SESC ou pra outro lugar pra contar história. A gente estava ali, as mulheres lavando roupa e contando e ouvindo… e tinha uma voz na minha cabeça que falava: “escuta isso aí, você vai ter que contar”.

E aí, agora eu falo com as minhas irmãs e pergunto: “você não ouvia quando as mulheres ficavam falando quem tinha as pernas bonitas e quem não tinha?, quando a bisa falava do homem da Ramela…” e as minhas irmãs falam que nunca ouviram nada disso, porque esse era um dom meu, eu tinha a escuta. Então não desenvolvi, ele estava comigo.

E todas as vezes que alguém falava que isso era um erro, que isso não era uma profissão, que eu não ia conseguir viver disso, muitas vezes eu tentei sucumbir e falar: “eu vou parar”. Porque o que acontece é que eu comecei a fazer tratamento muito cedo no psiquiatra por causa disso, porque eu falava muito, eu queria recontar as coisas pra não esquecer. E eu fui ficando doente por conta da quantidade de remédio que era colocado em mim pra que eu não falasse.

Descobrir isto e trazer essa voz à tona e todas as histórias, inclusive botar no livro Café, voltar ao largo da casa da minha mãe pra lembrar quantas voltas eu dei ali...eu poderia ter sido um Marabu, eu poderia ter sido qualquer outra coisa dentro da formação que eu trouxe e eu não consegui porque o racismo e todas essas coisas que colocaram sobre a arte que eu trouxe, sobre o meu dom, quase me mataram, não me permitiu. E eu fui enlouquecendo realmente.

Porque o que eu queria fazer não podia. E quando eu queria ficar parecida com aquilo que as pessoas queriam que eu fizesse eu entrei para o alcoolismo. Comecei a beber porque eu não tinha dinheiro pra comprar calmante o tempo inteiro e fui enlouquecendo.

Então me entender dentro desse segmento e dizer “você é uma contadora de histórias, mexe na sua memória que está lá, você é um guardião das cavernas, é só se entender”, aí tudo ficou claro pra mim. Não é aquilo que o outro fala, eu tenho a minha filosofia, eu não penso, mas eu sinto, por isso eu resisto.

E é muito importante a tradição da oralidade, de como as histórias são contadas e recontadas, às vezes ganham outros contornos, mais brilho ou menos brilho...

Porque a gente foi sendo adaptado só àquelas histórias dos Andersen, da Branca de Neve, a Bela Adormecida, são histórias que não nos contemplam. E a gente sonhava com isso, ser uma Branca de Neve, de aparecer um príncipe. E só depois vai caindo a realidade, a gente vai vendo que em uma Festa Junina ninguém tira a gente pra dançar. Numa festinha de Primavera, a gente só vende o ingresso. Nunca ganha.

Então as histórias de casa são particulares, únicas. A minha bisa tinha essa história do “rameleiro”, que ela dizia que o “homem da ramela” passava com o balde pela maçaneta. Isso ficou, eu não consigo esquecer, acredita? Como é que ele passava lá? O mito é uma coisa que põe a gente numa realidade...eu vejo ele passando pelo buraco.

A senhora postou há pouco tempo atrás uma foto com uma camiseta onde estava escrito: “Quero Mulheres Negras no Poder”. Nas últimas eleições, a gente teve uma melhora significativa nos índices de homens e mulheres negras eleitos e eleitas. Mas ainda estamos muito distantes de uma igualdade nos cargos majoritários. Por exemplo, no caso de presidentes e governadores estaduais, vemos poucas ou quase nenhuma candidaturas negras. Como a senhora acha que nós vamos virar esse jogo?

Olha, eu vou te falar como foi que virou o meu jogo. Eu não sabia o que era política. Aqui, quando eu era criança, eu lembro que quando tinha eleição - só tinha Arena e MDB - eu via que o meu padastro ficava, no dia da eleição, anotando os candidatos - que só os homens anotavam.

Quando eu já estava casada, com 14 anos, já tinha filho e um dia chegou aqui nessa região um povo para falar do que era direitos e deveres. E eles vieram pra falar da terra e que a gente tinha direito à terra. Porque nós vivemos num espaço estreitinho e as outras pessoas que eram estrangeiras tinham espaços muito grandes de terra. Mas eu ainda não entendia.

Começou aí o meu envolvimento com o movimento Sem-Terra e foi assim que a gente viu chegar todo o bairro que tem para o lado de cá, que é o Jardim Filhos da Terra e muita gente começou ter moradia. E aí começamos a entender: todo mundo tem que ter moradia, todo mundo tem que ter o que comer, todo mundo tem que ter o que plantar e alguém disse: “isso é política”.

As pessoas que vieram pra cá, quando chegaram aqui disseram: “eu preciso que as pessoas mais jovens dessa região sejam orientadas pra que ocupem um lugar de decisão”, que eu não sabia onde era Brasília. Naquela época até teve um boom dessas iniciativas, porque hoje, quando eu confronto o meu livro com outras mulheres negras, eu vejo que o mesmo que aconteceu na Zona Norte, aconteceu em toda a Grande São Paulo, era uma emancipação e ocupação dos espaços.

Só que depois isso acabou. Esses encontros eram feitos nas casas, na verdade primeiro nas igrejas, depois nas casas. Foi um movimento tão bonito, que nos levou a pensar em uma grande emancipação e a gente entendeu muitas coisas. Eu não sei porque isso foi acabando e esse lugar, de cada regional, para falar sobre violência da mulher, sobre alimentação, ele foi sendo ocupado por uma outra igreja pentecostal.

É preciso que isso retorne, a gente precisa ocupar esses espaços. Nós não estamos onde se decide a nossa vida, a gente passa na rua aqui e são 25 buracos da Sabesp. A gente não sabe o que que é. Vai mais ali em frente, alguém tranca uma coisa, você não sabe o que está acontecendo, quem é que comanda quem.

A gente lida com pessoas que são tratadas como deputados, mas eles são funcionários e a gente precisa entender isso. Agora, pra isso, é preciso que a educação melhore e quem é que vai despentecostabilizar as nossas fronteiras? A gente está cercado por esse povo que não deixa a orientação passar, em benefício próprio.

E parte dessas igrejas, que de alguma maneira ocupam esse lugar de estado, estão alinhadas com o atual presidente da República…Como é que a senhora tem visto o atual cenário eleitoral? O que esperar do Brasil em caso de uma reeleição de Bolsonaro? A senhora vê uma luz no fim do túnel?

É, eu já não sei bem se eu vejo a igreja com o mesmo olhar que você. Acho que a igreja é um lugar misto, encontro algumas pessoas com um certo caráter, mas eu tenho medo da sua pergunta. Eu penso em outubro e meu coração recua. Eu tenho medo. Eu tenho filho, eu tenho netos.

E eu sei porque no Golpe de 1964 eu fui a vítima. Eu estava em período de formação, estava me educando e isso destruiu parte da minha trajetória. E várias crianças vão ser penalizadas por isso, já estão sendo penalizadas.

Porque, eu não sei entender a dimensão da violência comparando com o Golpe de 1964, porque eu não tinha esse olhar. Hoje eu vejo a violência, as pessoas armadas, a ideia de que toda essa violência está certa, toda essa agressão…eu tenho medo e não encontro outra palavra pra isso.

Eu não posso ficar em cima do muro, muito embora tudo isso dê errado, eu tenho uma posição e eu tenho os meus pares, eu sei com quem eu posso contar, eu tenho muito medo de perdê-los. Eu tenho muito medo das perdas, porque cada vez que a gente perde, a gente se enfraquece bastante.

Mas eu sei onde está a minha linha de frente, eu não estou iludida. Mesmo assim, eu balanço, porque no meu meio eu ainda vejo muita gente que é favorável ao que está acontecendo. Gente minha, gente de família, gente que sofre e que fala que “ele” tem que ficar porque é temente a Deus, porque ele é contra isso…É muito grave isso dentro das nossas famílias. Tudo isso me apavora e não pode continuar.

A senhora trouxe ao mundo quatro filhos, os dois mais conhecidos, Emicida e Evandro Fióti levam a arte, arte negra de periferia, pra todo canto do mundo. Hoje, como a senhora enxerga esse legado deixado pra eles?

Eu tenho muito orgulho dos meus filhos, das meninas também, do caminho que a gente rumou. Você sabe que a forma como eu criei os meus filhos, as pessoas sempre diziam que estava errada. Deveria encaminhá-los pra fazer o que tinha que fazer.

Tinha muito medo de que eles ficassem como eu, à margem da estrada, que não tinha conseguido nem estudar e nem ganhar um dinheiro pra sobreviver. Eu tinha medo. Quando o Leandro começou a cantar rap e quando o Evandro entrou pro McDonald's, eu chorei.

Mas eu também sempre tive muita esperança, muita fé neles. Eu lembro que desde o princípio, tem uma história que as pessoas falam que crianças da periferia ou vão pro manicômio, ou vão pra cadeia ou vão pro cemitério. Mas eu tinha a convicção de que eu não tive filho pra isso.

Eu sempre dizia pra eles que a vida iria dar a resposta. Então, eu não estava errada. E muito embora muitas pessoas diziam que não era assim que se educava, eu achei que tinha que ser assim e fico muito contente com o resultado. Todo mundo que me fala dos meninos, não só como artistas, mas como pessoas, dizem que são pessoas muito interessantes. Fico com o coração aquecido.

Foto: Brasil de Fato, por José Eduardo Bernardes

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