Por Cláudia Ricaldoni*
Antes de falar da crise aprofundada pela pandemia, gostaria de voltar um pouco antes, em 2015, quando o Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC), que regulamenta nosso sistema, tentou discutir e trabalhar com a resolução nº 30. O foco era permitir que os fundos de pensão se adaptassem a um novo patamar de investimentos. Atualmente, 80% dos investimentos das nossas fundações estão em títulos públicos federais. Como os juros no Brasil sempre foram absurdamente altos, o sistema se acostumou a rentabilizar a partir desses papéis.
Mas, já estava claro, desde 2012, 2013, que a taxa de remuneração desses títulos estaria decrescendo ao longo do tempo e gostaria de frisar esse “ao longo do tempo”, pois os fundos de pensão fazem investimentos de longo prazo, apesar de a visão dos atores do sistema (participantes, patrocinadoras e órgãos de regulação) ser de um imediatismo irracional para quem trabalha com previdência. A ideia da resolução era dar o tempo necessário às fundações para se adaptarem e buscarem a rentabilidade em outros ativos que não os títulos públicos federais, redirecionando os investimentos para a área produtiva.
Lamentavelmente, o que vimos depois de 2015 foi uma crise política que alimentou uma crise econômica, que aprofundou ainda mais a crise política, agravando a situação, inclusive com a criminalização de dirigentes e de certas modalidades de investimentos, como os fundos de investimentos e participações, os FIP, deixando os gestores em pânico – em vez de investirem com mais risco, preferiram continuar na segurança dos títulos públicos, ainda que eles não remunerem de forma adequada para garantir os compromissos dos nossos planos.
Presente conturbado
Chegamos a 2020 com esse cenário e o que vemos agora? Aumento do passivo dos planos de benefício definido (BD), a rentabilidade patinando, sem conseguir responder ao aumento do passivo, taxa Selic baixa, juros reais da economia praticamente negativos, e os fundos de pensão sem conseguir redirecionar os investimentos para a economia real.
Na crise instalada em 2020, do ponto de vista das patrocinadoras, temos a crise econômica que impacta fortemente as empresas, que afirmam ter dificuldade em honrar os compromissos com as fundações. Muitas começam a se apropriar do saldo não resgatado para pagamento de contribuição normal nos planos de contribuição definida e variável (CD e CV), além da política de privatização das estatais e de redução dos custos “pós-emprego”, pois no Brasil previdência é encarada como despesa.
Em vez de discutirem como fazer para o país voltar a crescer, as empresas passam a discutir como transferir o ônus da crise para os participantes, o elo mais fraco do sistema, desrespeitando contratos de 20, 30 anos, e com o aval do órgão fiscalizador e do judiciário.
Do ponto de vista dos participantes e assistidos, as consequências imediatas das demissões e da falta de apoio do governo significam a perda da rentabilidade dos planos vitalícios, pressão para retirada de patrocínio e extinção dos planos BD, além do fato de se tornarem, muitas vezes, a única fonte de renda familiar. E os planos BD estão criminalizados porque é aí onde estão os tais custos “pós trabalho”.
O Estado, que deveria agir para defender os participantes, não cumpre com o seu papel, chancelando a transferência da conta para os participantes, sendo conivente com o desrespeito ao arcabouço regulatório do sistema. Isso também faz parte do que chamo de racionalidade neoliberal.
Consequências
Em 2020, a Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão e dos Beneficiários de Planos de Saúde de Autogestão (Anapar) apresentou propostas para enfrentar a crise da covid-19, que sequer chegaram a ser analisadas, assim como outras que estavam na pauta do CNPC. Apenas aprovaram alteração de prazos para envio de documentos à Previc. O argumento para a inércia e omissão foi que a pandemia se resolveria até o fim daquele ano. As consequências estão aí, nos balanços de 2020.
Mas, e o futuro? Apesar do cenário, acredito que haja, sim, um futuro e ele depende de nós para ser bom ou ruim. Apenas com outra visão de sociedade conseguiremos sair deste atoleiro em que nos encontramos. O problema, no Brasil, não é a crise da covid-19, que, mesmo difícil, não era para nos deixar passando por tantas agruras. A visão de sociedade e o projeto de nação em vigor potencializam os estragos da pandemia. É uma visão ultraliberal de sociedade, que trabalha o tempo todo em favor de uma minoria, em detrimento de uma maioria.
Este é o pano de fundo. A Anapar tem um projeto de sociedade e de sistema que não é o que está posto. O que foi implantado em 2016 é um projeto que visa concentrar renda na parcela mais rica da sociedade, com o congelamento dos investimentos em saúde, educação, seguridade social por 20 anos. Depois, com a reforma trabalhista, que flexibilizou direitos e retirou financiamento da previdência.
Na sequência, uma reforma da previdência que retirou direitos e – muita gente não percebeu – abriu a possibilidade para os bancos e seguradoras administrarem os recursos dos fundos de pensão, acabando assim com a previdência complementar fechada sem fins lucrativos, que somos nós. Além disso, abriu caminho para privatizar 100% da previdência pública. É isso o que está colocado na Emenda Constitucional 103/2019.
Outra sociedade
Mas, não adianta consertar as consequências desses ataques aos nossos direitos adquiridos – fim dos planos BD, transferência do risco para os participantes, falta de planejamento estratégico de futuro, desrespeito ao marco regulatório da previdência complementar e aos contratos – se essa visão de superestrutura não for resolvida, construindo uma nova visão de sociedade, recuperando a solidariedade, o sentido de bem comum, de cooperação, não permitindo a pobreza obscena que temos neste país.
Nossa tarefa, como participantes e assistidos de fundos de pensão, é lutar pela revisão do marco regulatório, pela proteção dos nossos direitos já adquiridos e do cumprimento dos contratos, pela construção de um novo modelo com visão previdenciária e com possibilidade de investimentos de longo prazo, na economia real, em infraestrutura, contribuindo também para a reconstrução do país. Temos que brigar muito para perder pouco, resistir e trabalhar para construir um outro futuro.
*Cláudia Ricaldoni é diretora da Anapar e membro do Conselho Deliberativo da Forluz
Artigo originalmente publicado no site da Anapar