A escravidão moderna atingiu 369 mil trabalhadores no Brasil em 2016. O número é ainda mais estarrecedor em uma perspectiva global: 40,3 milhões de pessoas ao redor do mundo foram submetidas a trabalhos em situações análogas à escravidão no mesmo ano, sendo que apenas o continente asiático concentra 62% desse número.
Os dados são do relatório Índice Global de Escravidão 2018, organizado pela fundação Walk Free e apresentado na Organização das Nações Unidas (ONU) no mês de julho. A Coreia do Norte encabeça a lista de países com maior incidência de trabalho escravo moderno, onde em cada mil pessoas, 104 tem seus direitos humanos e trabalhistas violados.
Em segundo e terceiro lugar estão os países africanos Eritreia e Burundi, respectivamente. Ainda de acordo com o documento, 71% das vítimas são mulheres e 15,4 milhões estavam em casamentos forçados.
Escravidão moderna
Na avaliação de Sofia Vilela, Procuradora do Trabalho, as informações do relatório evidenciam que é preciso ir além do conceito de trabalho escravo historicamente conhecido, onde as pessoas estão literalmente aprisionadas, para entender a realidade da escravidão moderna, em que indivíduos são submetidos a condições de trabalho extremamente degradantes.
A procuradora aponta que, seja no ambiente doméstico, rural ou em empresas, muitos trabalhadores são obrigados a ultrapassar excessivamente a jornada de trabalho e permanecem em ambientes inseguros, sem água e alimentação. Além do trabalho forçado, o conceito de escravidão moderna também inclui a servidão por dívida e outras práticas semelhantes à escravidão.
“A situação de exploração que tanto era evidente em um período de escravidão que aconteceu no Brasil e em várias partes do mundo, e que em algumas ainda acontece, vai se transformando”, explica Vilela. “Hoje em dia observamos que as formas de exploração dos trabalhadores vão se alterando e consequentemente cabe a sociedade estar vigilante em relação à essa exploração.”
A especialista ressalta a importância do Direito do Trabalho na defesa dos direitos dos trabalhadores e complementa que a escravidão moderna é acentuada em locais onde há maior ausência do Estado e o alto numero de casos é fruto de uma desigualdade social extrema.
“A raiz do problema do trabalho escravo contemporâneo sempre vai ser a desigualdade social. Não são pessoas ricas ou classe média que estão sujeitas a trabalho escravo São pessoas oriundas de classes mais pobres, em regiões menos desenvolvidas, que acabam se sujeitando a situações de exploração por falta de opção, pela falta de uma atuação do Estado que seja eficaz para diminuir essa desigualdade social”, enfatiza.
Brasil escravocrata
De acordo com o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, mantido pelo Ministério Público do Trabalho em cooperação com a Organização Internacional do Trabalho, no período de 2003 a 2017, ocorreram 43.696 resgates de pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão no país. O município de Confresa, localizado no estado do Mato Grosso, é o município brasileiro com maior prevalência de resgates, seguido de Ulianópolis (PA), Brasilândia (MS), Campos dos Goytacazes (RJ) e São Desidério (BA).
Segundo informações do Ministério do Trabalho, no ano de 2017 foram realizadas 88 operações de fiscalização para erradicação do trabalho escravo, enquanto em 2016 foram 115. Em resposta a demanda da reportagem, Ministério declarou que o plano orçamentário para esse fim teve contingenciamento de 52,2% em 2017.
Em carta-denúncia, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) afirma que há um contínuo desmantelamento das políticas de combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil, ou seja, há uma ação deliberada para impedir a fiscalização de combate ao trabalho escravo moderno.
Apesar do Ministério do Trabalho afirmar que, para 2018, não houve contingenciamento orçamentário, a entidade acusa que, no período de um ano, pela terceira vez, fiscalizações planejadas do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) são prejudicadas pela falta de recursos e dificuldades operacionais, como a compra de passagens aéreas.
“Sem fiscalização o mundo do trabalho volta à barbárie. Instaura-se um círculo vicioso de precariedade, de pobreza, exploração e falta de condições de consumo, que afeta o sistema produtivo nacional, com impactos nefastos sobre o desenvolvimento social e econômico do país”, diz a carta.
Ana Palmeira Arruda Camargo, diretora do Sinait, reforça que a situação é preocupante. “Nós estamos combatendo uma chaga social que é o trabalho escravo. Se pra esses locais para onde iriam se dirigir às fiscalizações, se houver um grupo em condição do trabalho escravo moderno, eles continuarão nessa situação”, lamenta “Existe o compromisso internacional de combater o trabalho escravo e ele não está sendo efetivado. Se a auditoria fiscal existe para fiscalizar e não está fiscalizando, o impacto é que o mundo do trabalho está sendo desmantelado”.
A sindicalista acrescenta que sem as fiscalizações, não há resgates, e portanto, caso comparado com dados dos outros anos, pode ser gerada uma falsa ideia da inexistência do trabalho escravo, quando na verdade, a ausência ou diminuição dos números é fruto da não fiscalização.
Sofia Vilela também condena a paralisação dos trabalhos de fiscalização. “A partir do momento em que não se prioriza uma atuação no combate ao trabalho escravo por parte do governo, do Estado, do Ministério do Trabalho, e diminui verbas para tanto, acaba-se deixando de lado uma atuação que é essencial, prioritária para minimizar a situação de exploração do trabalho humano”.
A partir de sua atuação no Ministério Público do Trabalho (MPT), a promotora reforça que as operações de fiscalização tem uma repercussão muito grande em lugares isolados e avalia que é necessário se posicionar contra a retirada de direitos.
“Temos que avançar nas fiscalizações, no orçamento para as forças tarefas, avançar na delimitação de punição para quem faz esse tipo de prática. Avançar na proteção do direito dos trabalhadores, avançar no sentido de um resgate mais acolhedor dessas pessoas oriundas de trabalhos análogos aos de escravos, e não o contrário”.
Retrocesso
Para o Sinait, a reforma trabalhista do governo Michel Temer (MDB) agrava a situação do trabalho escravo contemporâneo no país.
“O trabalho escravo ainda está presente em atividades econômicas no campo e nas cidades. Com a reforma trabalhista, as situações de trabalho precário poderão, com muita facilidade, se configurar escravidão contemporânea. Há probabilidade de avançar por setores em que ainda não há registros desse tipo de exploração”, alerta o sindicato.
Vilela concorda com o argumento de que a reforma trabalhista de Temer permitiu formas de relação de trabalho muito mais prejudiciais ao trabalhador e representam retrocessos de conquistas históricas.
“A reforma trabalhista alterou cerca de 200 dispositivos, incluindo parágrafos e artigos da CLT, com uma justificativa de modernização, de desenvolvimento. Mas obviamente o fundo da reforma trabalhista não foi esse. No final, observamos que todos os dispositivos que ali se encontram na verdade servem para favorecer um lado da relação de trabalho, que é o empregador”, denuncia.
Em maio deste ano, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) colocou o Brasil na lista dos 24 casos responsáveis pelas principais violações de suas convenções trabalhistas no mundo.
Trabalho escravo no Sul de Minas: 15 foram resgatados em fazenda de café
A necessidade de emprego aliada a falsas promessas engana milhares de pessoas todos os anos, que acabam submetidas a condições degradantes de trabalho. Foi assim com 15 homens e rapazes resgatados em Muzambinho, Sul de Minas, na semana passada. Eles estavam há meses trabalhando com a colheita do café na fazenda Córrego da Prata, em péssimas condições.
A casa em que foram abrigados estava literalmente “caindo aos pedaços”. O telhado da varanda já despencou e o fim parece breve para o forro interno. As condições para dormir, de higiene e alimentação eram desumanas. No início, conta um dos jovens, chegaram a ficar três dias trabalhando sem comer, pois o empregador não forneceu nem o fogão, nem o gás, nem os alimentos que havia prometido.
As condições ilegais se estenderam para os equipamentos de trabalho. Na colheita do café é necessária uma máquina para realizar o trabalho, de valor médio de R$ 2 mil. Cada trabalhador da fazenda foi obrigado a comprar a sua e pagar pela gasolina que gastava. Uma situação totalmente irregular. O artigo 458 da Constituição Federal diz que ferramenta de trabalho não é salário e que ela deve ser fornecida pelo patrão.
Um dos trabalhadores teve desconto de R$ 1 mil em uma quinzena de produção. Não recebeu praticamente nada nessa remessa. “Mas o que mais deu raiva foi o roubo na produção”, conta um dos jovens, de 22 anos. Funcionava assim: eles colhiam 55 sacas de café, de acordo com suas contas, mas na contagem do dia o administrador anotava 30. “Não adiantava discutir. Ele começava a gritar e a bater nas coisas”, conta. Com essa e outras fraudes, o administrador diminuía as comissões que pagava a eles.
Família de deputado na lista do trabalho escravo de novo?
A equipe de resgate do Ministério do Trabalho, junto à Polícia Federal e ao Ministério Público, encontrou 15 pessoas na Fazenda Córrego da Prata e classificou a lida como “trabalho análogo à escravidão”. Elas foram retiradas do local na mesma tarde e o Ministério do Trabalho começou as negociações com o patrão para o pagamento correto de todos os direitos.
Segundo os funcionários, a fazenda em questão é de propriedade de Maria Júlia Pereira, cunhada do deputado estadual Emidinho Madeira (PSB). É a terceira vez que a família do deputado é autuada por trabalho escravo. Emídio Madeira, pai do deputado, possui 112 processos no Ministério do Trabalho por infrações. Em 2015, foi autuado por manter 60 trabalhadores em regime análogo à escravidão na fazenda Santa Efigênia, em Bom Jesus da Penha, também em Minas. Em 2016 foi novamente autuado, desta vez por manter 14 trabalhadores em trabalho análogo à escravidão nas fazendas Boa Vista e Cafundó, na mesma cidade.
Fiscalização ainda é insuficiente
Jorge Ferreira dos Santos, um dos coordenadores da Articulação dos Empregados Rurais (Adere-MG), acompanha os resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão há 15 anos. Na opinião dele, os fazendeiros continuam praticando o crime porque têm “certeza da impunidade”. Além de diversos problemas, as equipes de fiscalização passam por um corte de verba desde 2017.
“O Ministério do Trabalho está totalmente sucateado, sem dinheiro, sem auditor, sem veículo. Hoje tem um déficit de mais de mil auditores fiscais. Grande parte vai se aposentar em 2019 e não tem concurso para nova contratação”, alerta. A fiscalização só diminui desde 2013, segundo dados do Ministério do Trabalho. Naquele ano, foram 189 operações, já em 2017 foram 88 operações.
Denunciar ou pedir ajuda
Ligue para o Ministério Público do Trabalho de Belo Horizonte: (31)3304-6200 ou para a Adere/CUT-MG no WhatsApp (35) 99221-7913. No site portal.mpt.mp.br tem o telefone e endereço de todas as regionais de Minas.
Lei do Trabalho Escravo
Segundo o artigo 149 da Constituição Federal, o trabalho pode ser considerado análogo ao escravo em quatro situações: condições degradantes de trabalho, jornada muito extensa, trabalho forçado através de ameaças ou de corte do transporte e servidão por dívida.
Deputados e senadores donos de fazendas ou que são apoiados por fazendeiros querem mudar o texto da lei. Pretendem excluir as frases “condições degradantes” e “jornada exaustiva”. Isso pode dificultar o combate a esse crime.
Fonte: jornal Brasil de Fato