Por Danielly Oliveira*
O Brasil vive um período de ofensiva contra programas e projetos de habitação de interesse social, com prefeituras de diferentes municípios retirando famílias ocupadas de prédios públicos para entregá-los à iniciativa privada. Segundo a Fundação João Pinheiro, o país tem um déficit de quase 6 milhões de moradias ao mesmo tempo em que há 6,8 milhões de imóveis desocupados e sem uso nos centros das grandes cidades do país.
Um dos casos mais emblemáticos ocorre em Porto Alegre: o prefeito Sebastião Melo (MDB) incluiu um prédio ocupado por integrantes da Ocupação Saraí em um programa de revitalização do Centro Histórico da capital gaúcha e obrigou a desocupação do imóvel, que dará lugar a empreendimento comercial de alto padrão no edifício, o Cais Rooftop. A decisão pôs fim à esperança das famílias em obter uma moradia digna.
O prédio que abriga a Ocupação Saraí é um símbolo da luta por moradia no Rio Grande do Sul. Ele já foi amplamente reivindicado para moradia popular e foi ocupado por quatro movimentos que também foram removidos pelo poder público, em 2005, 2006, 2011 e 2013.
O prédio foi construído durante a ditadura militar para servir de moradia popular com financiamento do Banco Nacional de Habitação (BNH), mas nunca cumpriu essa função. Em 2014, o então governador Tarso Genro (PT) assinou um decreto que estabelecia o imóvel como bem de interesse social, abrindo as portas para a desapropriação e construção de um projeto de habitação popular. Porém, no governo de José Ivo Sartori (MDB), o projeto foi suspenso e as famílias que moravam na ocupação acabaram sendo despejadas.
"Se a Saraí foi um símbolo da luta pela moradia e do cumprimento da função social da propriedade, o Rooftop proposto no prédio se torna o símbolo da especulação imobiliária promovida pela gestão municipal", argumenta a coordenadora do Movimento Nacional de Luta por Moradia no Rio Grande do Sul (MNLM-RS), Ceniriani Vargas da Silva.
O projeto gaúcho tem sido criticado por arquitetos e urbanistas, movimentos populares e moradores da região por privilegiar interesses do mercado imobiliário e por ir contra o Plano Diretor da cidade em projetos pontuais.
"As pessoas precisam morar em algum lugar. As ocupações existem devido à busca por moradia, mas também como uma forma de denunciar a violação do direito humano", também pontua a arquiteta e urbanista e diretora secretária do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Rio Grande do Sul (Saergs), Karla Moroso.
A reportagem tentou entrar em contato com a Prefeitura de Porto Alegre, mas não obteve retorno. Em nota oficial em seu site, a administração municipal explica que "o Programa de Reabilitação do Centro Histórico de Porto Alegre viabiliza e fomenta a reabilitação de edificações subutilizadas com a intenção de melhorar a qualidade urbanística da região". O secretário do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), Germano Bremm, afirma no texto que "o projeto [do Cais Rooftop], além de ser muito bonito, atende quase que na integralidade os requisitos do programa".
Higienismo de norte a sul do país
O problema não se restringe à capital gaúcha: desde 2021, o Ministério da Economia realiza o Feirão de Imóveis SPU+, que já colocou à venda mais de 1,3 mil prédios abandonados em Porto Alegre, São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG).
Brasília (DF) também não fugiu da lista de cidades em que o capital prevalece sobre projetos de habitação popular. Em 2015, o Hotel Saint Petter foi a leilão e pôs em risco a moradia de 400 famílias que ocupavam o local pelo Movimento Resistência Popular. O mesmo aconteceu com o Hotel Torre Palace, que abrigava outras 150 unidades familiares. As duas construções estavam abandonadas e se localizam no Eixo Monumental, uma das principais avenidas da capital brasileira.
Em dezembro de 2021, em Belém (PA), 80 famílias do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas foram retiradas pela Polícia Civil de um prédio que estava abandonado no centro da cidade. O despejo aconteceu depois de menos de 24 horas de ocupação. De acordo com pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, baseada em estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), proporcionalmente à população, a capital paraense tem o maior déficit habitacional do Brasil: faltam 80 mil imóveis.
"O que acontece com essas famílias é um claro exemplo de higienismo, porque existe uma tendência geral em expulsar os pobres dos centros urbanos", defende o dirigente do Movimento Nacional de Luta pela Moradia de Tocantins (MNLM-TO) Gabriel Araújo.
O problema ainda se repete na maior cidade do país, onde há 830 mil famílias vivendo em residências inadequadas. Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, só no centro da capital paulista há 70 prédios abandonados habitados por 4 mil famílias, que veem nas ocupações uma forma de garantir o seu direito à moradia. A luta dos movimentos sociais é conseguir que esses espaços se transformem em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS).
"A política fundiária precisa ser do poder público, não adianta deixar essa condução na mão do mercado imobiliário", afirma Evaniza Rodrigues, integrante da União Nacional por Moradia Popular (UNMP). "Só assim teremos moradia popular para as pessoas", complementa.
Conquistas da luta por moradia popular
Também existem vitórias na luta pelo direito à moradia no Brasil. É o caso da ocupação Prestes Maia, uma das maiores ocupações da América Latina, que, depois de 20 anos, finalmente se tornou uma habitação popular.
Com 23 andares em seus dois blocos e localizado no bairro da Luz, em São Paulo (SP), o prédio foi construído em 1950 e funcionou como sede da Companhia Nacional de Tecidos até 1990. A tecelagem, porém, foi à falência e a imensa construção permaneceu vazia e abandonada até 2002, quando foi ocupada. Agora, o prédio será reformado e entregue à habitação popular.
Para a diretora técnica de Estudos e Pesquisas Adjunta do Sindicato de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (SASP), Mariana Cicuto Barros, esses casos de sucesso existem graças à pressão das lideranças comunitárias. "As ocupações servem de moradia para quem não tem, mas ela também precisa ser vista como um processo de denúncia", afirma.
A Prefeitura de São Paulo anunciou que o edifício é um dos muitos outros prédios abandonados que serão adquiridos e reformados.
Uma questão de política pública
Pelo menos 222 mil pessoas vivem em situação de rua no Brasil, segundo dados de 2020 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Esse número, no entanto, aumentou de modo expressivo nos últimos dois anos. Isso porque, apesar do lema "fique em casa" durante a pandemia de covid-19 e das recomendações de órgãos de proteção de direitos humanos para evitar os despejos, quase 27 mil famílias foram despejadas de suas residências no período. Os dados são da Campanha Despejo Zero e escancaram a relação clara entre o agravamento da pandemia e a crise econômica.
A avaliação dos movimentos sociais é que, em parte, isso se deve ao desrespeito à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir despejos por tribunais estaduais e regionais. A crise sanitária ampliou a movimentação política em torno do debate sobre as remoções das famílias e a discussão acabou indo parar no STF, que inicialmente havia suspendido os despejos até 31 de dezembro do ano passado. Depois, o prazo foi estendido para 31 de março de 2022 e, novamente, até 31 de junho. Por último, foi estendido até o final de outubro.
O direito à moradia é assegurado pela Constituição Federal de 1988 para todos os brasileiros e brasileiras, como uma competência comum da União, dos estados e dos municípios.
"Independentemente da área de atuação, os arquitetos precisam estar atentos para essa questão. Temos que entender que a cidade tem uma parte rica e uma parte pobre e que o nosso trabalho precisa ser instrumento de diminuição dessa desigualdade", afirma Karla.
*Jornalista da Jardine Agência de Comunicação
Fonte: BdF Rio Grande do Sul