A inexistência de uma agenda de políticas públicas por parte do governo federal para conter o avanço da pandemia do coronavírus no Brasil torna praticamente inevitável a escalada de propagação da doença pelos próximos meses, com resultados catastróficos para as populações socialmente mais vulneráveis. O Banco Mundial prevê que a crise pode empurrar para a pobreza extrema mais de 5,5 milhões de brasileiros neste ano, levando o país a entrar novamente no radar do Mapa da Fome das Nações Unidas. A avaliação é do diretor do escritório no Brasil do Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês), Daniel Balaban.
“O país está hoje com um número muito alto pessoas em extrema pobreza, que ganham menos de US$ 1,90 por dia – o equivalente a R$ 11. São 9,3 milhões, segundo dados de 2018”, afirmou Balaban, em entrevista ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’. “O Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014. Agora, está caminhando a passos largos para voltar”, avaliou, citando os dados do relatório do Banco Mundial. Balaban criticou a atuação do governo do presidente Jair Bolsonaro no combate ao coronavírus.
“O grande drama que vejo é que não há uma unicidade, um comando que lidere o Brasil como um todo para sair desta pandemia”, disse o diretor das Nações Unidas.“Cada estado toma suas próprias decisões, os municípios também estão tomando. O governo federal tem uma linha difusa, não sabe se apoia ou não a Organização Mundial da Saúde (OMS), se apoia a quarentena ou não. Isso fica muito complicado”, criticou.
Brasil saiu do Mapa da Fome no governo Dilma
O Brasil deixou o Mapa da Fome durante o primeiro mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2014. À época, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) divulgou um relatório com dados do estado da segurança alimentar no mundo, no qual as políticas públicas do país mereceram destaque especial. A agência dirigida em Roma pelo criador do Fome Zero, José Graziano da Silva, constatou que a fome no Brasil havia caído 82% entre 2002 e 2013.
Graças às ações e programas implementados primeiramente na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, depois, aprofundados por Dilma Rousseff, o Indicador de Prevalência de Subalimentação, instrumento empregado pela FAO há mais de cinco décadas para avaliar o estado da segurança alimentar no mundo, ficou abaixo de 5%. O limite é estabelecido como parâmetro para que um país entre ou deixe o Mapa da Fome.
“Sair do Mapa da Fome é um fato histórico para o país”, comemorou a então ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello. “A fome, que persistiu durante séculos no Brasil, deixou de ser um problema estrutural”, afirmou. Naquele ano, a subnutrição passou a ser tratada como um problema isolado. “Chegamos a um percentual de 1,7% de subalimentados no Brasil. Isso significa que 98,3% da população brasileira tem acesso a alimentos e tem segurança alimentar”, observou Campello. “É uma grande vitória.”
Pela primeira vez, um governo integrou programas e articulou cadeias de ações e medidas para combater a pobreza em várias frentes. Em pouco mais de uma década, foram gerados 21 milhões de empregos, com crescimento real do salário mínimo de 71,5%, um aumento inédito na renda dos mais pobres. O programa Bolsa Família atendeu mais de 14 milhões de famílias. Já o Merenda Escolar disponibilizou refeições a mais de 43 milhões de crianças e jovens. Em uma década, a ingestão de calorias para a população cresceu mais de 10%.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), iniciativa que permitiu a compra institucional da produção alimentar do pequeno agricultor, virou referência internacional. O programa promoveu o acesso à alimentação em escolas, creches e pequenos vilarejos do Brasil profundo, ao mesmo tempo em que fortaleceu a agricultura familiar. Só em 2015, o governo garantiu R$ 25 bilhões para o setor.
Extinção do Consea
O governo viabilizou ainda a participação efetiva da sociedade civil na formulação de políticas públicas ao recriar, em 2003, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), instrumento de diálogo, transparência e governança. Por meio de uma ampla e democrática discussão com organizações sociais, o governo definiu as diretrizes do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
No início de 2019, em uma inequívoca demonstração da linha anti-democrática que daria o tom de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu o Consea. O fim do conselho, um ato de desprezo pelo diálogo entre os diferentes atores da sociedade civil, foi lamentado pelo diretor do Programa Mundial de Alimentos.
“[O Consea] foi extremamente importante. Muitas políticas concebidas a partir do início do século 21 foram aperfeiçoadas através desse conselho. O governo não é obrigado a seguir, se não concordar. O Brasil criou o Consea e hoje vários países do mundo têm conselhos criados com base nele”, observou Daniel Balaban ao ‘Estado de S. Paulo’.
Pequeno agricultor
Em entrevista concedida ao programa Canal Agrovoz, o diretor do órgão a ONU também reivindicou o fortalecimento do pequeno agricultor, severamente atingido pela crise e pela falta de políticas públicas. O Programa de Aquisição de Alimentos, que já teve orçamento de R$ 1,2 bilhão, hoje não passa de R$ 100 milhões. “O pequeno agricultor familiar é responsável por toda a nossa alimentação. Não é possível que fiquem sofrendo os reveses de uma crise, eles são a base da sustenção de um país como o Brasil”, afirmou Balaban.
“É muito importante que a gente olhe para eles, que foque neles, que se faça políticas públicas que sejam sustentáveis’, destacou. “Se nós não tivermos capacidade de atender aos nossos produtores, quem terá?” No âmbito da crise, pontuou o diretor, o mundo precisará de alimentos que sejam acessíveis a todos. “E como barateamos o alimento? Fazendo com que as políticas públicas possam dinamizar a produção e ofertar una renda qualificada para os produtores. Só assim sairemos de uma forma melhor dessa crise”, ressaltou.
O diretor do órgão da ONU defendeu ainda uma reestruturação social e econômica dos governos. “Vamos precisar de uma economia mais participativa, na qual todos caibam nesse processo. Temos um problema mundial fortíssimo, chamado concentração de renda”, avaliou Balaban.”O mundo precisa desconcentrar”, opinou o diretor, referindo-se à parcela 1% mais rica da população, notadamente banqueiros e proprietários de grandes fortunas. “As crises vêm para que possamos aprender. Sairemos mais fortalecidos, e o mundo será mais justo e mais equânime depois que tudo isso acabar”.
Fonte: CUT