A alta nos preços dos combustíveis no Brasil tem levado o presidente Jair Bolsonaro (PL) a reclamar da Petrobras publicamente. Ele já afirmou que o lucro da estatal é um “estupro” e que a companhia está “arrancando dinheiro do povo” ao vender gasolina, diesel e gás de cozinha a valores tão altos no mercado nacional. Todas essas demonstrações de insatisfação, entretanto, não passam de uma encenação de Bolsonaro, segundo a geóloga Rosangela Buzanelli, funcionária e integrante do conselho de administração da Petrobras.
O conselho define os principais rumos da estatal. É ele quem determina, por exemplo, a política de preços da companhia. Buzanelli representa os trabalhadores da Petrobras neste fórum desde 2020. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela afirmou que, apesar das reclamações, Bolsonaro nunca agiu para mudar os preços praticados pela companhia.
Segundo Buzanelli, Bolsonaro discursa, na verdade, para desestabilizar a empresa. Faz isso, inclusive, com um objetivo claro: vender a estatal. “Bolsonaro troca pessoas, mas as novas continuam defendendo a mesma política de preços”, afirmou. “Isso está orquestrado. Toda essa campanha que o Bolsonaro faz contra a Petrobras é no sentido de culpá-la pelo preço alto, de cooptar a opinião popular para apoiar essa privatização”, explicou.
O presidente Bolsonaro indicou em maio Caio Paes de Andrade à presidência da Petrobras. Caso ele assuma a chefia da estatal, será o quarto a dirigir a empresa durante a gestão Bolsonaro. O terceiro só neste ano. O que motiva tantas mudanças e como elas afetam a empresa?
Isso é muito ruim. A Petrobras é novamente alvo da mídia por conta dessa confusão e por conta dos altos preços dos combustíveis. Nós que trabalhamos na empresa ficamos sob extrema instabilidade. O presidente Bolsonaro troca presidentes com alguns objetivos: primeiro, ele agrada seus eleitores demonstrando uma insatisfação com o preço da gasolina e do diesel; depois, ele tenta eximir sua responsabilidade pelos preços – mas, se ele realmente quisesse mudar, os preços seriam mudados; por último, ele coloca a população contra a empresa. Aliás, ele tem sido efetivo em colocar a população contra a empresa porque o apoio à privatização da Petrobras tem crescido nas pesquisas.
No fim das contas, tudo isso visa mesmo privatizar a Petrobras com um discurso que a gente já conhece. É o mesmo discurso dos que disseram que a Reforma Trabalhista iria gerar mais emprego e que a Reforma da Previdência melhoraria a economia. É o discurso de que privatizar barateia. Acontece que há fatos e dados que comprovam o contrário.
A gasolina e o diesel estão custando em torno de R$ 7. Esses valores são recordes. Desde de que Bolsonaro assumiu o governo, em 2019, o preço dos combustíveis quase dobrou. Por que o combustível está tão caro?
Isso é resultado de uma política de preços definida pelo governo federal em 2016, após o golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Por essa política, a Petrobras cobra pelo combustível vendido ao brasileiro como se tudo fosse importado, como se fôssemos um país completamente dependente – mas não somos. A Petrobras exporta petróleo cru e importa uma parcela dos derivados que nós precisamos. Isso é cerca de 20% da nossa necessidade. Acontece que todos esses derivados são cobrados como se nós importássemos 100%.
Antes de 2016, nós tínhamos o preço internacional como uma referência. Nosso custo de produção e de refino de combustível no Brasil é muitíssimo mais baixo do que o preço internacional. A gente diluía esse preço mais baixo no preço mais alto do combustível importado. Tinha um preço, no geral, mais baixo. Só que isso mudou.
Mudou como? Por quê?
A Petrobras começou a diminuir a utilização da capacidade de suas refinarias. Uma refinaria pode trabalhar com 90% de sua capacidade. Isso baixou para cerca de 70%. A gente refinava menos do que podia. Com isso, foi promovido o crescimento das importadoras de combustível no mercado brasileiro. O crescimento delas a partir de 2016 foi absurdo.
Só que se a Petrobras cobrasse um preço mais barato ela poderia inviabilizar o negócio das importadoras, certo? Então se formou um uma associação, a Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom). Quando os preços da Petrobras ficaram abaixo dos de importação, a Abicom foi ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para dizer que a estatal estava praticando preços desleais. Antes mesmo que o Cade investigasse o assunto, a Petrobras, já na gestão de Roberto Castelo Branco [indicado por Bolsonaro], disse: ‘então, vou vender metade do meu parque de refino’. A empresa nem se defendeu. Fez um acordo que virou álibi para privatizar.
Por que a empresa não pode vender combustível barato hoje? Porque tem que viabilizar o negócio dos importadores e a venda das refinarias. Ninguém vai comprar refinaria no Brasil para vender combustível barato. Já foi vendida a Refinaria Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, que hoje pertence ao fundo soberano dos Emirados Árabes. Eles vendem o combustível mais caro do Brasil. No fim, isso tudo é para viabilizar a privatização. Só que quando privatizar, não haverá mais controle de preços. Ou o Estado vai subsidiar com dinheiro de todos ou vamos pagar mais caro.
Você nos faz parecer que Bolsonaro faz um “jogo de cena” com a Petrobras. Ele estaria demonstrando uma insatisfação que, na verdade, não existe já que ele não toma nenhuma atitude concreta para reduzir os preços. É isso mesmo?
Quem define a política de preço? No fundo, é o governo federal. O governo Federal que indica a maioria dos integrantes do conselho de administração da Petrobras. Ele tem o controle sobre a empresa porque é sócio majoritário e tem a maioria no conselho. Se o governo acha que esse preço não está justo, tem que chamar seus conselheiros e determinar a mudança na política de preço. O conselho define, o presidente e a diretoria executam. A presidência e a diretoria também são indicadas pelo governo, pelo presidente da República. Então, dá para mudar a política de preços? Claro que dá! Bolsonaro troca pessoas na Petrobras, mas as novas continuam defendendo essa política de preço.
O conselho de administração da Petrobras esteve reunido em maio. Chegou a ser divulgado na imprensa que, na pauta do encontro, estaria a discussão sobre a política de preços da estatal. Há uma conversa sobre isso?
Eu não posso falar de questões internas do conselho. Contudo, há uma visão da maioria do conselho de que não é viável uma mudança. Essa visão atual leva em conta inclusive questões sobre a legislação e o estatuto da Petrobras. Uma visão de que, se a Petrobras tiver que fazer política pública, a União tem que chamá-la a fazê-lo e tem que indenizar por eventual prejuízo. Há visões que restringem essa autonomia do conselho da Petrobras de mudar a política de preços.
Essa legislação surge após a operação Lava Jato. Era um momento em que a Petrobras estava “traumatizada” por conta de escândalos de corrupção. Hoje, está claro que a Lava Jato não realizou uma investigação imparcial, que ela tinha objetivos políticos.
A Lava Jato foi uma ferramenta para destituir um governo popular e se apoderar da “província do pré-sal”. Toda essa desestabilização criada por ela tinha um objetivo: abrir essa riqueza do pré-sal para empresas concorrentes da Petrobras. Agora, nós estamos vivendo um outro período de extrema instabilidade e tumulto dentro da Petrobrás. Nós que trabalhamos lá todo dia vemos isso. Eu estou lá há 35 anos.
No governo Collor, nos chamavam de marajá. O governo de Fernando Henrique Cardoso tentou privatizar a empresa e se deu mal. Agora, passamos pelo governo Temer e temos Bolsonaro. O presidente, em vez de proteger a maior estatal brasileira, a ataca. Isso porque o objetivo dele é privatizar. Eles não estão aí a serviço do povo, estão a serviço do mercado.
Existe chance real de privatização da Petrobras?
Sim. Não sei se no tempo que eles querem, mas sim. Agora o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), diz que quer colocar ações da empresa à venda. Ele sabe que não pode fazer isso. Isso seria privatizar. Isso depende da aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). É um jogo de cena, mas a verdade é que há uma intenção real de fazê-lo. Isso está orquestrado. E está orquestrado não é de agora. Há tempos eu falo desta sinfonia. É o Bolsonaro, é o Paulo Guedes e aí entra o Lira dizendo que tem que privatizar.
E toda essa campanha que o Bolsonaro faz contra a Petrobras é no sentido de culpá-la pelo preço alto, de cooptar a opinião popular para apoiar essa privatização. Esses governantes estão a serviço de interesses outros que não são os do país. A gente não pode relaxar. Com esse congresso dominado pelo Centrão tudo é possível. Ou nós fazemos pressão popular ou eles conseguem vender tudo.
A Petrobras tem registrado lucros recordes. Foram R$ 106 bilhões só em 2021. Nos primeiros três meses deste ano, outros R$ 44 bilhões. Isso é bom ou ruim para uma empresa estatal, controlada pelo governo?
Lucrar não é ruim. Agora, o volume desse lucro é que eu acho questionável. Nesse lucro está embutido um preço de combustível injusto para a sociedade. Um bujão de gás custa 10% de um salário mínimo. As pessoas voltaram a cozinhar com álcool e os acidentes com queimaduras aumentaram. E isso quando tem comida para cozinhar.
Com esse lucro, esse preço dos combustíveis, a inflação galopou. O arroz e o feijão estão mais caros. Tudo está mais caro. Fora isso, o lucro é maior porque vendemos o patrimônio da Petrobras. Isso também entra no balanço. Uma empresa tem que dar lucro? Tem! Agora neste volume estão embutidos fatores que eu discordo profundamente. Não dá para comemorar um lucro que não está sendo revertido para a sociedade.
É possível que a Petrobras tenha lucro e colabore com o país?
A Petrobras é uma empresa fundada para atender os interesses do povo brasileiro, o interesse público, o interesse da sociedade. A empresa sempre atuou para o país. Esteve presente nos rincões ajudando o desenvolvimento. Na época do pré-sal, que é uma riqueza estratégica, gerou-se muito emprego. Gerou porque havia política de Estado para o desenvolvimento utilizando as estatais.
A Eletrobras levou luz aos rincões por meio do programa Luz para Todos. A Petrobras também desenvolveu várias regiões e desenvolveu a indústria nacional com a política de conteúdo local. O conteúdo local exigia que cerca de 60% do que era comprado pela empresa tinha que ser produzido no país. Isso alavancou a indústria, os estaleiros, veio junto a siderurgia, a engenharia pesada. Com o golpe de 2016, essas políticas foram desmontadas. O conteúdo local diminuiu brutalmente.
A Lava Jato mandou parar todas as obras da empresa. As construtoras faliram. Foram mais de 4 milhões de empregos perdidos. Mas estatais continuam aí para executar políticas públicas. Já o fizeram muito bem. O que houve foi um desmonte. Se a gente retomar essas políticas, vamos retomar o desenvolvimento, a economia vai melhorar, vai haver geração de empregos e renda. Toda a economia vai girar.
Fonte: Brasil de Fato (PR), por Vinicius Konchinsk