O governo de Jair Bolsonaro (ex-PSL) está usando o argumento de que a Emenda Constitucional (EC) nº 103, da reforma da Previdência, promulgada em 12 de novembro do ano passado, prevê que trabalhadores celetistas e concursados, ou não, de empresas públicas, devem ser desligados após a aposentadoria, para promover uma série de demissões em massa, de trabalhadores da ativa nas estatais brasileiras.
Os desligamentos, que provocam um apagão de conhecimento, é uma das táticas do governo para sucatear as estatais, demitindo sem substituir, sem fazer novos concursos para repor os trabalhadores que foram desligados e, assim, facilitar o processo de privatização do patrimônio brasileiro, que pode ser vendido a preço de banana.
O governo ignora que, enquanto destrói o patrimônio público, a qualidade do atendimento prestado à população é afetada, como no caso do apagão do Amapá, onde houve sucateamento, demissão, privatização e na hora em que faltou energia no estado, trabalhadores experientes da estatal Eletrobras foram chamados para resolver a trágica situação.
Indiferentes ao legado nefasto que vão deixar para o país, técnicos do governo utilizam a brecha na lei para sucatear e desmontar as estatais que estão na mira das privatizações como o Serpro, a Eletrobras, a Petrobras e os Correios, entre outras. Nessas empresas, as demissões estimuladas por Planos de Demissões Voluntárias (PDVs) e o assédio moral e pressão para que os trabalhadores se desliguem são constantes.
Só no 4º trimestre de 2019, o quadro de funcionários das estatais diminuiu em 13,4%, admite o governo no Boletim das Empresas Estatais Federais (BESF) da Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, ligada ao ministério da Economia.
A Petrobras demitiu em torno de 20 mil trabalhadores próprios e outros 200 mil terceirizados e, evidentemente, a estatal não repõe o quadrfo com a quantidade nem a experiência necessária, afirma o secretário de Comunicação da CUT Nacional, o petroleiro Roni Barbosa.
“Isto gera na empresa um apagão de conhecimento extremamente danoso para o processo produtivo, para o repasse das informações dos mais antigos para os mais novos”, diz o dirigente.
“É lamentável, porque estão os mais experientes estão sendo empurrados para fora, não porque há uma nova geração entrando, mas meramente por razões financeiras, o que representa um custo muito alto para a questão técnica e na prestação de serviços para a população”, completa Roni, lembrando que esse “apagão” de pessoal na Petrobras aconteceu na década de 1990, quando a estatal ficou quase dez anos sem fazer concurso público, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e as consequências foram trágicas.
“Infelizmente, perdemos vidas no afundamento da plataforma P -36. Também houve danos sérios ao meio ambiente com o vazamento de óleo no Rio Iguaçu, no Paraná, e vazamento de petróleo na Baia da Guanabara, no Rio de Janeiro”, afirma o dirigente citando algumas das consequências do apagão de conhecimento que as demissões de trabalhadores experientes que não puderam repassar seus saberes para os novos trabalhadores podem provocar.
Para os dirigentes da FUP, as demissões dos profissionais mais antigos podem colocar em risco até mesmo a soberania nacional porque a engenharia e tecnologia para explorar o pré-sal são brasileiras, graças aos trabalhadores da Petrobras que a desenvolveram.
O engenheiro e diretor da Associação dos Empregados de Furnas (ASEF), do holding Eletrobras, Felipe Araújo, compartilha da mesma preocupação do petroleiro. Para ele, o que está por detrás dessas demissões são os projetos privatistas do governo que demite os profissionais mais experientes, não faz concursos e derruba a qualidade do serviço prestado à população, tanto pela falta de equipes como pelo fim da expertise e do conhecimento que os mais velhos levam embora.
Com um serviço ruim, a população começa a reclamar e apoiar a venda dessas empresas, acreditando que a responsabilidade é do trabalhador e da trabalhadora e não do governo federal que não oferece apoio material e pessoal, para melhorar a qualidade dos serviços prestados.
A população só percebe que foi enganada quando acontece uma tragédia como apagão que ocorreu no último dia 3 no Amapá, deixando o estado às escuras. Apesar de o serviço ter sido privatizado no estado, o que segundo o governo seria garantia de bons serviços prestados, são os profissionais da Eletronorte/Eletrobras que estão consertando o erro da multinacional espanhola Isolux. De oito convocados, cinco deles estão na lista do Plano de Demissão Voluntária.
Para Felipe, se a empresa fizesse uma avaliação de todos os riscos inerentes ao negócio, entenderia que experiência, o capital humano, intelectual da empresa, mesmo não sendo concreto e mensurável, é valioso.
“Os trabalhadores enviados ao Amapá atendem ao perfil que a empresa quer colocar para fora. Todo o conhecimento e capacitação acumulados são descartáveis para a empresa porque ela visa utiliza unicamente o critério econômico, imediatista”.
O dirigente critica ainda a política de passagem de conhecimento da Eletrobras. Segundo ele, o correto seria que os mais experientes, que aderissem aos PDVs ou se aposentassem, tivessem um prazo mínimo de dois anos para repassar o conhecimento. Um ano trabalhando meio período, preparando material pedagógico e mais um ano somente dedicado à transmissão do seu conhecimento, seja escrevendo manuais ou ministrando aulas para os demais trabalhadores.
Mas, ocorre o contrário, quando alguém assina o PDV sai quase imediatamente levando todo o seu conhecimento embora, e quando a empresa precisa, muitas vezes ele é recontratado por um período como assessor especializado porque não dá para passar 30 anos de experiência em apenas seis meses.
“Tem gente que conhece todo o sistema energético brasileiro de cabeça, sabe tudo o que acontece. É um legado que não pode ser jogado fora, mas na Eletrobras essa passagem de conhecimento não é feita. Não há interesse da empresa em preservar o capital intelectual, ela finge que está tudo certo”, critica Araújo.
Para o engenheiro a falta de recolocação de trabalhador e de transmissão do conhecimento coloca em risco não só a qualidade do serviço prestado como a vida dos trabalhadores.
“Todo o sistema energético é colocado em risco. Uma coisa é alguém com 20, 30 anos de experiência acumulada, outra é um recém-formado ter de resolver algo que pouco entende”, reforça Araújo.
A situação no Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) não é diferente. Ativos e aposentados saem, não tem concurso ou são substituídos por trabalhadores sem experiência acumulada.
E o caso do médico do Trabalho, Cláudio Pinto de Lemos Guimarães, que trabalhou durante 45 anos na empresa e saiu sem passar seus saberes para um substituto é exemplar. Ele era responsável pela organização de atendimento médico, implantada dentro do Departamento de Recursos Humanos da Regional da estatal em Recife (PE). Apesar de quase cinco décadas dedicadas à empresa, doutor Cláudio foi demitido por e-mail no último dia 3 deste mês de novembro.
Outros 55 trabalhadores e trabalhadoras já aposentados pelo Serpro também foram demitidos. Em comum, todos os desligados levaram embora a expertise.
Dr. Cláudio lembra que, na medicina a experiência conta e muito, mas isto não foi levado em consideração pelo Serpro. Quando a empresa não respeita a sua matéria-prima que é o seu funcionário, o produto final entregue nunca será bom”, diz o médico, que saiu sem receber os 40% do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), a multa rescisória, nem o aviso prévio. A empresa alega por ser aposentado ele não tem direito a esses benefícios.
Além do desrespeito com seus funcionários, o Serpro está utilizando de falsos argumentos para demitir os aposentados, diz o médico. A EC 103 deveria ser aplicada nos casos de pessoas que se aposentaram após a sua promulgação no ano passado. Cláudio se aposentou há cerca de oito anos, portanto bem antes da lei passar a valer.
Com Bolsonaro, sobe número de demissões
Apesar de contar com mais de 476 mil servidores, o Brasil ainda não tem um quadro suficiente para atender com mais qualidade a população. E ao contrário do que divulga este governo neoliberal, o país não tem excesso de servidores e sim há falta de pessoal.
Um levantamento feito pela Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite) conclui que o Brasil tem um percentual de 12,5% de servidores públicos em relação à população empregada, bem abaixo da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Na análise da entidade, fica demonstrado que o Brasil está muito abaixo da média da OCDE para esse indicador, de 22%.
Confira os números das demissões nas estatais
Na Petrobras, maior estatal brasileira, levantamento do economista Cloviomar Cararine, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) /subseção da Federação Única dos Petroleiros (FUP), mostra que os trabalhadores e trabalhadoras são mais jovens e têm menos tempo de casa.
Em 2012, 58% dos trabalhadores tinham menos de 20 anos de empresa, hoje chegam a 79%. No ano passado, 70% dos trabalhadores da Petrobras (holding) tinham menos que 50 anos de idade. Em 2015 esta faixa etária representava 67%.
Na Eletrobras, os saberes que deixaram a estatal, seja por Plano de Demissões Voluntárias (PDVs), seja por Plano de Demissões Consensuais (PDCs) depois do golpe de 2016 são incalculáveis.
De acordo com o relatório anual da Eletrobras de 2017, dos 22.830 trabalhadores, 2.055 aderiram ao PDV daquele ano.
Em 2018, o número de funcionários caiu drasticamente chegando a 15.604. Foram 2.991 desligamentos, 908 voluntários e o restante saiu por meio do Plano de Aposentadoria Extraordinário. No ano passado, o número de trabalhadores que continuaram na empresa também foi menor: 13.369. E a empresa quer enxugar mais e chegar a cerca de 11 mil.
“Estamos sem concurso público há quase 10 anos, e só no atual governo Bolsonaro foram três planos de demissões voluntárias na Eletrobras”, afirma Felipe Araújo.
Ação civil pública da Fentect para manter trabalhadores
O processo de desmonte das estatais atacando o seu principal capital que é o humano também passa os Correios. A direção da empresa vem utilizando a EC 103, assim como o Serpro, para demitir os trabalhadores que se aposentam, sem dar tempo, sequer, da experiência adquirida ser transferida aos mais jovens.
O secretário de comunicação da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios e Telégrafos e Similares (Fentect), Emerson Marinho, discorda deste posicionamento da empresa, tanto que a Federação entrou com uma ação civil pública questionando a forma de desligamento, considerado inconstitucional, e pede tutela antecipada da manutenção dos funcionários.
Segundo ele, na verdade, os Correios estão se valendo de outro argumento da EC nº 103, que diz que os trabalhadores aposentados não podem acumular vencimentos do mesmo órgão pagador. Só que quem paga seus salários é o próprio Correio e a aposentadoria é pela pelo INSS, órgãos distintos da União. Além disso, os trabalhadores dos Correios não são, em sua imensa maioria, servidores públicos, e sim, funcionários celetistas de estatal.
“Quem se aposenta pela União, a partir de 13 de novembro de 2019, é desligado compulsoriamente, mas os Correios nos contratam no regime celetista”, explica Marinho.
O dirigente diz ainda que, baseado na EC, já foram desligados mais de 200 trabalhadores, e há a possibilidade de desligarem ainda cerca de 4 mil dos 99 mil, o que compromete o bom atendimento da população.
‘”Os Correios têm um histórico de bons serviços à população há 357 anos e, é considerada uma das melhores empresas do mundo. Seu corpo técnico não é formado apenas por carteiros, como muita gente pensa. Sem transmitir o conhecimento, perdem todos, perde a empresa, perde a população”, adverte Marinho.
Outro aspecto criticado pelo dirigente da Fentect é que os aposentados demitidos acabam perdendo um rendimento importante para sua subsistência.
“A maioria se aposenta com R$ 2 mil ou R$ 2,5 mil porque o salário é baixo. Então essa ofensiva do governo em demitir nada mais é do que acelerar o processo de privatização dos Correios”, critica.
Em nota , a direção da Fentect criticou a posição da direção da empresa.
Além do Serpro, Eletrobras, Correios e Petrobras outras estatais passam por um processo de desmonte como os bancos públicos. Na última segunda-feira (9), a Caixa Econômica Federal anunciou mais um Plano de Demissão Voluntária, com a possibilidade de adesão de mais de 7.200 bancários, o que deve comprometer ainda mais o atendimento à população.
Fonte: CUT