Bolsonarismo tem raízes em um Brasil construído à margem do Estado, afirmam pesquisadores



Bolsonarismo tem raízes em um Brasil construído à margem do Estado, afirmam pesquisadores

Enquanto grupos de extrema direita ocupam as ruas nos EUA e na Europa contra a vacinação obrigatória na pandemia, no Brasil essa narrativa não prosperou. Os alertas de Jair Bolsonaro (sem partido) tiveram pouca ressonância na base e não deram origem a um movimento consistente de recusa à imunização.

O descompasso com correntes ultraconservadoras do Hemisfério Norte, na pauta antivacina, ilustra que o bolsonarismo não é mera expressão local do trumpismo ou do neofascismo, mas um fenômeno essencialmente brasileiro.

A reflexão é de Fabio Peixoto Bastos Baldaia, doutor em Ciências Sociais, professor de Sociologia do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e um dos responsáveis pela pesquisa O Bolsonarismo e o Brasil Profundo: uma análise sobre a ascensão e a permanência de um fenômeno sociocultural e político.

“A narrativa antivacina se descola do ‘Brasil Profundo’ porque é exótica para os brasileiros, que tomam vacina há décadas, vacinam os filhos etc. Então, já era, porque o discurso do bolsonarismo só funciona quando está colado com a moral popular de longa duração”, analisa Baldaia.

O estudo sobre o bolsonarismo começou em novembro de 2020 é uma das frentes do Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos Brasil Profundo do IFBA. Em julho deste ano, Baldaia publicou um artigo com os resultados parciais da pesquisa em conjunto com os professores Tiago Medeiros e Sinval Silva de Araújo.

Medeiros é professor de Filosofia do IFBA e realizou parte de seus estudos de doutorado na Universidade de Harvard, nos EUA, sobre as raízes da institucionalidade. A tese foi defendida em 2020 na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Araújo é professor de Sociologia do IFBA, mestre em Ciências Sociais e doutor em Serviço Social.

Os três estão na fase final de produção de um novo artigo sobre o bolsonarismo, para publicação em inglês na revista Brazilian Journal of Development em novembro. Em conversa com o Brasil de Fato, eles ressaltam a importância desse objeto de pesquisa para compreender a conjuntura do país.

Na interpretação do grupo, o bolsonarismo capitaneou um sentimento de anti-institucionalidade que vem sendo alimentado durante séculos no chamado Brasil Profundo.

Nessa “região invisível”, os valores, as crenças, a moral e mesmo o humor popular se constroem à margem das instituições ou da estrutura formal do Estado. Para milhões de brasileiros, resta a família como estrutura de amparo e afeto – e Bolsonaro ganha status de mito ao defendê-la.

Confira os melhores momentos da entrevista:

Brasil de Fato: Por que vocês decidiram aprofundar as pesquisas sobre as origens do bolsonarismo? Qual a relevância desse objeto de estudo, mais de mil dias após as eleições de 2018?

Fabio Baldaia: Somos colegas no Instituto há muitos anos e sempre conversamos informalmente sobre o Brasil. Em 2017, tivemos a ideia de formalizar um grupo de estudos para debater e sistematizar a literatura sobre o tema – Gilberto Freyre, Carlos Nelson Coutinho, Caio Prado Júnior.

Começamos com uma dinâmica de estudos quinzenal, e em seguida transformamos o grupo em um projeto de extensão, para reler Jessé Souza, José Murilo de Carvalho...

Nosso interesse era retomar uma discussão sobre o Brasil e entender as singularidades da nossa formação social, a partir de aspectos econômicos, institucionais, culturais. Os estudantes gostaram muito, e o grupo atraiu muitos interessados.

Passamos, então, a trabalhar com a noção de Brasil Profundo, que seriam os elementos de longa duração que formam o Brasil e que se expressam nas práticas e representações políticas e morais, em certo tipo específico de humor etc.

Nosso processo de formação é marcado por uma profunda desigualdade, pela violência, mas também pela anti-institucionalidade – uma forma de escorregar por entre as regras.

Isso faz com que haja certa desconfiança e aversão do brasileiro comum – não só dos mais pobres – às instituições vinculadas diretamente ao Estado, e uma reinvenção dos processos.

Nossa proposta é identificar elementos duradouros nessa formação, e que se materializam no bolsonarismo. Então, assumimos o desafio de pensá-lo a partir da noção de Brasil Profundo.

 O bolsonarismo já foi vitorioso. Porque o debate público e as condições de ação política foram constrangidas, e esse movimento gerou frutos nos estados e municípios.

Além de nós três, o grupo é composto por uma estudante de Ciências Sociais da UFBA, um servidor técnico-administrativo e uma estudante de Geografia do IFBA.

O que nos incomodou, desde o início, era ver o bolsonarismo apenas como descontinuidade. Bolsonaro não surgiu do nada, nem foi resultado simplesmente do uso das mídias [sociais], sem vínculo com o processo histórico brasileiro.

Após um período de leitura, de embasamento teórico, estamos finalizando a etapa de coleta de dados quantitativos – notícias publicadas na Folha de S. Paulo e no G1 nos últimos três anos, tuítes de influenciadores do bolsonarismo e pesquisas de opinião no período –, que deve contribuir com nossas análises.

Uma das nossas preocupações é entender como esse fenômeno pode permanecer depois [do mandato do presidente]. Ele já existia antes, de alguma maneira, sem o nome de Bolsonaro. E esse personagem deve refluir em algum momento, mas aquilo que o bolsonarismo mobiliza, não sabemos se vai desaparecer tão rapidamente. É algo que está no rio do Brasil Profundo, digamos assim.

Tiago Medeiros: Boa parte da pesquisa acadêmica e da opinião de imprensa tentou associar Bolsonaro instantaneamente à Trump ou às figuras do populismo de direita do Leste Europeu. Essa associação colocava Bolsonaro como “espírito do tempo”, deslocando-o de suas raízes profundas, que são tipicamente nacionais.

Se há uma coincidência momentânea entre o populismo de direita e o Bolsonaro, essa relação não é a única. Porque Bolsonaro possui elementos que não são necessariamente conservadores, e nem liberais – como ele prometia, ao nomear Paulo Guedes para o Ministério da Economia.

Existe uma espécie de mistura, uma composição elaborada de espontânea, não intencional, por uma massa de representações e práticas que nós identificamos no Brasil Profundo – que é uma espécie de região, invisível ao primeiro olhar, mas perceptível e respirável por todos nós.

Nós sentimos o Brasil Profundo, mas temos dificuldade ao identificá-lo como objeto de análise. Essa é uma das nossas tarefas.

Em que aspectos o bolsonarismo se assemelha ou difere de outros períodos de ascensão conservadora no Brasil, como em 1964?

Sinval Araújo: A não institucionalidade é um elemento central para entender o Brasil, e está ligada à nossa formação como capitalismo periférico. A gente nunca conseguiu ter um exército de trabalho formalizado, então parte da população sempre teve que dar um jeitinho, sobreviver à margem do Estado.

A chegada de Getúlio [Vargas] ao poder 1930; a tentativa de um golpe constitucionalista em 1932; o Estado Novo, em 1937; o suicídio de Vargas, em 1954; o golpe militar, em 1964; o “golpe dentro do golpe”, pela linha mais dura do Exército, em 1967. Em todos esses eventos, há um feixe de autoritarismo, que se revela na forma de se tratar o pobre, o negro.

Nossa polícia sempre foi extremamente autoritária contra a “ralé” social e os grupos desprivilegiados, como parte de uma agenda política.

No bolsonarismo, também há um elemento de recriação da realidade. Ele aglutina em torno de si uma série de conservadorismos que estavam “espalhados” na sociedade brasileira: o militarismo, o neopentecostalismo, as reações às pautas identitárias – sobretudo, LGBT. Não à toa, ganhou força no discurso anti-PT o chamado “kit gay”.

O bolsonarismo não deve entendido como exceção – como se houvesse um fio condutor da história que nos levaria à felicidade, e Bolsonaro estaria nos atrapalhando nesse percurso. Eu me permito recuperar o pensamento de Paulo Arantes e afirmar que essa “exceção” talvez seja a nossa forma de ser e existir como Brasil. Não se trata, portanto, de um empecilho que vamos resolver com um processo eleitoral.

Se não entendemos isso, corremos o risco de achar que, em 2022, o Brasil voltará a ser um paraíso – e não refletimos devidamente sobre os erros que permitiram a vitória de Bolsonaro em 2018.

O bolsonarismo não são só as fake news que manipularam a população. Ele tem substrato na realidade concreta, na vida das pessoas. A gente não pode negar o alcance dessas ideias e que muitas vezes elas têm ressonância entre as camadas mais pobres.

Bolsonaro capitaneou certos debates que setores progressistas nunca conseguiram. Por exemplo, o da violência urbana, que todos os dias mata uma quantidade enorme de pessoas negras, de policiais.

Fabio Baldaia: A institucionalidade brasileira sempre foi extremamente excludente, e os processos históricos, conduzidos pelas elites, “por cima”. Desde a República, que foi um golpe militar, passando pela República Velha, com poder concentrado entre as oligarquias.

Autoritarismo e desigualdade atravessam nossa história. Nos últimos 15 anos, ela diminuiu um pouco, mas a mudança foi muito sutil.

Milhões de pessoas continuaram tendo que se virar economicamente, recriando suas representações, sua maneira de ver a realidade, à margem do que é considerado certo.

O que a pessoa pensa, quando ganha R$ 1.100 por mês, compra um celular de R$ 1 mil, e é roubado? Qual a sensação? A gente sabe que isso gera revolta, e Bolsonaro foi hábil ao capturar essas sensações que estavam dispersas. Ele deu uma cara a tudo isso e ofereceu um discurso.

Nessa narrativa, uma conclusão justifica a outra. “É isso mesmo. Tem que bater, tem que matar. É errado ser gay. O lugar da mulher é em casa. Quem manda é o homem. Tem que respeitar e enaltecer a ação policial. Militar é melhor do que civil. Movimento social, ou é crime ou é vitimismo. Tem que trabalhar e parar de ficar reclamando. É melhor trabalhar sem formalização do que não trabalhar.”

Esse combo foi aglutinado de maneira impressionante.

Assim que Bolsonaro foi eleito, parte da imprensa e dos analistas dividiam seu governo: de um lado, a pauta de “costumes”, a ala ideológica; do outro, os ministros técnicos, mais pragmáticos e racionais. Essa separação realmente existia? O bolsonarismo seria o produto das duas alas ou estaria representado apenas pela primeira?

Tiago Medeiros: No fundo, o bolsonarismo sempre foi a pauta dos costumes. A onda dele nunca foi a do pensamento liberal, pragmático ou racional para os assuntos de Estado.

Por essa razão, todos que ficaram no governo acabaram se “bolsonarizando” – quando o que se acreditava, no início, era que o presidente seria disciplinado pela ala “mais racional” do governo.

Gustavo Bebianno, Santos Cruz, Sergio Moro, Henrique Mandetta... todos caíram, e os que ficaram foram absorvidos sob o manto de Bolsonaro.

Isso demonstra a força política dele. Bolsonaro é um fenômeno muito brasileiro e um sujeito de enorme brilho político. O que o suporta é a pauta dos costumes, que é disseminada por seus apoiadores, e que ele renova frequentemente.

Na campanha de 2018, essa pauta foi desenhada à luz de contribuições importantes, como a de Olavo de Carvalho. Ele ajudou a “sofisticar” o discurso de Bolsonaro para as massas.

Há boas razões para, nas bases, termos um senso conservador. O receio de perder um filho para o traficante faz com que uma mãe solteira queira colocá-lo sob as asas do pastor. Associado a Olavo de Carvalho, Bolsonaro deu caráter universal a esse conservadorismo difuso, associando a necessidade de proteção da família a uma série de movimentos “ameaçadores” que acontecem mundo afora: o comunismo, a China, o tráfico de drogas, os movimentos LGBT...

Na prática, muitas pessoas não conhecem nada disso, nem sabem o que significa, mas começaram a achar que, de repente, sairá um comunista do seu guarda-roupa – e esse comunista será, ao mesmo tempo, gay, índio. Enfim, uma grande mistura, que sintetiza metaforicamente a forma como Bolsonaro conseguiu popularizar o discurso tradicionalista de Olavo de Carvalho.

Faço essa retomada para ressaltar que a base dos costumes é a mais importante, desde a eleição. E é compreensível que a imprensa e os analistas tenham feito essa divisão, em duas alas. Porque mesmo os atores, os ministros, estavam se concebendo dessa forma.

Sergio Moro e Paulo Guedes, por exemplo, nunca se viram como parte do mesmo time de Ernesto Araújo e Damares Alves.

Sinval Araújo: Quase todo mundo subestimou Bolsonaro, julgando que ele fosse menor do que é. Por incrível que pareça, ele é inteligente, e parte dos setores progressistas não consegue entender isso – como se ele fosse meramente tosco, um burro completo.

No governo, tudo que pudesse ter um ar civilizatório, de certo contrato social, de certa institucionalidade, foi morrendo com o decorrer do tempo. E ele passou o trator.

Em torno da figura dele tem o elemento do mito, com uma suposta capacidade de salvação. E ele precisa necessariamente parecer maior do que aqueles que o rodeiam. Se não for nessas condições, ele esmaga – como ocorreu com Mandetta no início da pandemia.

Com a saída de Moro, de Mandetta, muitos achavam que era o fim do governo, mas ele manteve seu público fiel.

Em resumo, existe um setor com raiz no Brasil Profundo que o legitima e continuará fazendo essa disputa. Porque Bolsonaro foi capaz de resgatar, na agenda conservadora, a ideia de ir para a rua. Depois de 1964, isso não tinha mais acontecido.

Eu fui à última manifestação [7 de setembro] em Salvador, por curiosidade sociológica e antropológica. E as demandas acenavam, todas, para a anti-institucionalidade: acabar com o STF, dar golpe, mandar prender ministro. As próprias polícias, que apoiam Bolsonaro, têm uma pauta anti-institucional, anti-Código Penal – “bandido bom é bandido morto”.

Para o projeto desse grupo se realizar, é preciso quebrar qualquer contrato social que passe pela legalidade: todo mundo deve comprar sua arma para se defender. E essa pauta tem substrato no mundo real, porque a violência urbana é um problema sério. A segurança é uma preocupação da maioria das famílias brasileiras.

É importante observar esse fenômeno e entender, inclusive, como a mentalidade do policial é formada. Até para podermos pensar políticas públicas, discutir agendas que contemplem esses sujeitos – a despeito de toda a crítica necessária sobre a violência policial.

Tiago Medeiros: O bolsonarismo trabalha o tempo todo com a ideia de que “a lei não deixa a gente trabalhar.”

Bolsonaro não terá nenhuma vergonha de chegar em 2022 e dizer: eu não fiz nada porque não me deixaram fazer.

Voltando ao debate sobre as duas alas no atual governo, eu diria que hoje não há mais essa divisão. Quem permanece com Bolsonaro já foi “ideologizado”.

A elite econômica teve que negociar e, ao mesmo tempo, ceder a uma figura que não está esteticamente a seu gosto. Seria melhor um [Geraldo] Alckmin, um [Henrique] Meirelles. Mas, se for alguém grosseiro que avance na pauta econômica, que faça as reformas, é tolerável para essas elites – mesmo a contragosto.

Ainda há parte dessa elite que acha que pode “controlar” Bolsonaro, e mesmo nós tendemos a considerar que a dimensão econômica prevalece e tem controle sobre esse movimento. Mas o governo pode abandonar a pauta liberal a qualquer momento. Ele pode dar um cavalo-de-pau argumentativo, como já fez com outros temas.

O conservadorismo é muitas vezes entendido como um movimento que quer manter as coisas como estão, evitando grandes transformações e prezando pelo respeito às normas. O bolsonarismo parece ser o contrário, porque se alimenta justamente da ameaça de ruptura. Onde esse fenômeno se localiza, dentro das tendências conservadoras?

Tiago Medeiros: O conservadorismo pode ser visto sob duas óticas: a dos costumes e das instituições.

Por exemplo, o ex-presidente Lula era conservador no plano institucional, mas não no plano dos costumes. Bolsonaro é exatamente o contrário – embora, nos costumes, seja mais precisamente definido como reacionário do que como conservador.

De fato, a relação dele com as instituições é muito atípica. Como dissemos, o humor, os valores, as práticas, representações e crenças nacionais se constituíram historicamente em oposição à uma institucionalidade formal, cristalizada, congelada.

Não contemplados pelas instituições, muitos dos brasileiros passam a olhá-las como um problema: a tendência é ser anti-institucional. Então, o Brasil é construído por meio do para-institucional, que são arranjos que contêm, ao mesmo tempo, elementos legais e ilegais.

É dessas para-instituições que a nossa história se moveu. E Bolsonaro consegue capitanear toda essa ira que o Brasil Profundo desenvolveu contra a institucionalidade.

“Acabar com isso aí”. “Acabar com tudo que está aí”. Bolsonaro deu voz, autorizou e abriu caminho para o reconhecimento das massas do Brasil Profundo contra o “sistema”, através de um discurso de atalho.

A originalidade de Bolsonaro é que, após anunciar na campanha uma postura contrária aos costumes institucionais, ele chega ao governo e mantém essa performance durante a gestão. É o primeiro presidente anti-institucional da história.

Bolsonaro não chega ao governo apenas devido ao uso fraudulento das redes sociais. Porém, o uso de aplicativos Whatsapp e Telegram parece ser um dos pilares para criação e difusão da sua narrativa. Qual o peso dessas ferramentas na construção e sobrevivência do bolsonarismo?

Fabio Baldaia: O bolsonarismo é o movimento mais bem sucedido na comunicação política contemporânea. Além de pautar a base mais fiel, eles conseguem pautar a imprensa, e têm financiamento para conduzir o debate público para os temas absurdos, como o voto impresso.

Nas redes, esse movimento impressiona e parece ser duas vezes maior do que realmente é. É com essa forma de comunicação que Bolsonaro coloca em pauta sua anti-institucionalidade.

Ao usar as redes sociais, ele está dizendo: a imprensa é parte do sistema, por isso temos que criar nossos próprios canais de comunicação. Isso se aplica mesmo dentro do governo: não se confia na informação oficial da Abin [Agência Brasileira de Inteligência], então cria-se uma “Abin paralela”.

Na pandemia, esse movimento se refletiu em mensagens de médicos bolsonaristas, que indicavam remédios que supostamente contrariavam os interesses das grandes farmacêuticas. Em todos esses elementos de comunicação política, está presente a recusa às instituições.

Nenhum outro grupo político encontrou formas de quebrar essa corrente de circulação e expansão das mensagens bolsonaristas. As pesquisas eleitorais mostram o declínio de Bolsonaro, mas suas ideias têm sido trabalhadas em públicos estratégicos, como os motoboys.

Eu defendo que o bolsonarismo é o maior movimento identitário brasileiro, no sentido de demarcar fronteiras em relação aos demais. Todo mundo que é diferente, ou pensa diferente, não é patriota, não é cristão, e deve ser combatido porque é “gayzista”, comunista, abortista, e por aí vai.

E eles se desviam das críticas também pelo atalho. Por exemplo, dizem que não são racistas, porque inclusive convivem com negros, que são negros “de bem”...

É nas redes sociais que essa identidade se constrói e se delimita. E o bombardeio de desinformação há anos vem minando a capacidade dos indivíduos de distinguirem notícias falsas.

Todo esse processo está na lógica da anti-institucionalidade, mas não é ingênuo ou espontâneo. Trata-se de uma estratégia.

As fake news quase sempre trazem um tom de revelação. “Descoberto por que Fernanda Montenegro é contra Bolsonaro: por causa da Lei Rouanet”. É a mesma lógica de: “Não tome as vacinas que a indústria farmacêutica está querendo obrigá-lo. Tome esse comprimidinho que vai ficar tudo bem”.

A linguagem é muito bem construída. Mas o bolsonarismo não acerta sempre.

Na disputa sobre as vacinas, por exemplo, ele perdeu. Na França, nos EUA, as pessoas continuam indo às ruas para não tomar vacina. Aqui, já foi: até quem é bolsonarista está tomando vacina.

O erro, a meu ver, é que ele se descolou do Brasil Profundo com a narrativa antivacina – que é exótica para os brasileiros, que tomam vacina há décadas, vacinas os filhos etc. E, depois que se descolou, já era, porque é uma prática de longa duração.

O bolsonarismo só funciona quando está colado com a moral popular de longa duração. E isso mostra como é importante calibrar sempre o discurso, na comunicação política, para manter esse cordão identitário com seu grupo.

O cristianismo tem um papel importante na história política do Brasil. O PT, que governou o país por 14 anos, tinha em suas origens uma ligação estreita com movimentos católicos progressistas, baseados na Teologia da Libertação. Hoje, quem está em alta, em plena expansão, são as comunidades evangélicas. Em que medida pode-se atribuir a essas igrejas a ascensão de Bolsonaro e sua sobrevivência política?

Fabio Baldaia: Quem não é evangélico na periferia brasileira é, de alguma forma, influenciado pelo discurso dessas religiões, especialmente neopentecostais.

Você escuta música gospel sem querer, você ouve a mensagem. É como o catolicismo difuso que existia no Brasil há algumas décadas – não precisava ser praticante para ser católico, e hoje isso ocorre com os evangélicos. O traficante é evangélico, o policial também é.

Então, é claro que a religião foi uma base importante para o bolsonarismo – não só os evangélicos pentecostais, mas os protestantes históricos, da classe média, os presbiterianos, batistas tradicionais, e vertentes mais tradicionalistas do catolicismo, especialmente em São Paulo.

Por meio das igrejas, o bolsonarismo ocupou o espaço das lideranças locais, de bairro. Os pastores de pequenas igrejas são muito influentes, fazem campanhas de caridade, arrumam emprego, alimentam uma lógica comunitária.

Bolsonaro é o candidato desses grupos, e seu derretimento é mais lento nesses segmentos justamente porque estão envolvidas questões morais.

Consolidou-se a ideia de que Bolsonaro representa suas pautas, seus valores. E ele dialoga com duas preocupações que ainda são grandes: que os filhos não usem drogas e não sejam gays. Essas ameaças, claro, se estendem a valores ditos “comunistas”: que minha filha não aborte etc.

Bolsonaro pode falar e fazer o que quiser, mas tem apoio e lugar cativo de muitos trabalhadores porque supostamente protege a família.

A família é um elemento central do Brasil Profundo. Se boa parte de nós vive à margem da institucionalidade, sem amparo do Estado, o que resta é a família. Quando há uma gravidez precoce, quando alguém fica doente, quando alguém precisa de dinheiro emprestado, é da família que vem o amparo, a rede de apoio.

Bolsonaro oferece significado a esses elementos práticos. Ele diz para as pessoas: eu sei o quanto a família é importante para você, e vou protegê-la. Ele não tem concorrente nesse campo.

Quem vive essa vida do familismo pode desistir de votar nele, mas não encontra em outro candidato essa identificação. As outras propostas parecem muito perigosas para essa instituição nacional, que é a família.

Quem é contra dificilmente entende isso, e bate na tecla de criticar a ideia de “família tradicional”. Mas, não se trata disso. Estamos falando de uma estrutura afetiva que oferece significado à vida de milhões de pessoas.

É quem vai ajudar, se reunir para um churrasco, tomar uma cerveja junto. De vez em quando vai ter briga, e vai ser feia, porque o Brasil Profundo também é violento. E é algo tão complexo que a mesma família que ama e apoia é muitas vezes conivente com práticas de violência entre seus membros.

Os evangélicos e o bolsonarismo passam por cima dessa complexidade e resolvem tudo muito simplesmente: a família é a base de tudo, e tem autonomia para educar seus filhos e resolver seus problemas.

O desafio da esquerda, nesse sentido, é imenso. Porque ela já está associada a algo nocivo e ameaçador – enquanto a família representa a aversão ao mundo da rua, ao que está fora.

E parte da esquerda brasileira ainda tem dificuldade ao estabelecer diálogo com os evangélicos. Há uma desconfiança de antemão. Com isso, você já perde 40% do público.

Sinval Araújo: É preciso lembrar que, nos últimos 15 ou 20 anos, tivemos uma mudança de valores culturais significativa no Brasil. O avanço da pauta LGBTQIA+, do direito dos casais homoafetivos, tudo isso gera choque e provoca uma espécie de guerra cultural.

Vivo em um bairro periférico, e frequentemente ouço: “Imagine Jesus Cristo representado como um gay, que absurdo!”. Mães querem proteger seus filhos da ameaça do narcotráfico, querem protegê-los da polícia, muitas não querem que seus filhos sejam gays.

Bolsonaro ainda consegue capitanear esse elemento do tradicionalismo da cultura brasileira, a tal ponto que fica difícil para qualquer outro candidato ocupar esse espaço.

Na guerra cultural, ele parece estar vencendo. E, desde 2018, o melhor exemplo é o “kit gay”: ninguém mais sabe se existiu, mas cumpriu seu papel enquanto dimensão eleitoral.

As escolas e universidades passaram a ser vistas, por muitos, como um local de sexo livre, de drogas, onde só há comunistas, e onde um dos objetivos é transformar os estudantes em gays – por mais absurdo que isso possa soar.

Qual a importância do discurso anticorrupção na formação do bolsonarismo, e como esse fenômeno sobreviveu ao descolamento da Lava Jato do governo Bolsonaro?

Tiago Medeiros: A Lava Jato morreu para o país inteiro, não quando Moro saiu do governo, mas quando Bolsonaro apoiou Artur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara dos Deputados. Porque quem queria assassinar a Lava Jato não era só o presidente, mas todos os políticos afetados potencialmente por ela.

O discurso anticorrupção aparece ativamente nas eleições. Depois que assume o governo, ele assume outro tom. A narrativa hoje é: “No governo atual, nenhum escândalo de corrupção foi descoberto até agora.”

As investigações contra os filhos dele, em um primeiro momento, remetem a outros tempos. Conforme novos indícios aparecem, ele vai precisar modular o discurso novamente.

O fato é que são dois estágios de defesa da bandeira anticorrupção. Primeiro, quando Bolsonaro precisava do apoio da Lava Jato, e já se consolidava como catalisador de todas as forças anti-esquerda. O segundo é depois que ele toma posse, e então se torna mais difícil dizer que ele está limpo e que seu governo combate efetivamente a corrupção.

Fabio Baldaia: A Lava Jato achou que era maior que o bolsonarismo e que, logo, iria tragá-lo. Para isso, Moro contou com apoio de magistrados, de procuradores, e da imprensa – eles achavam que iriam dominar o Bolsonaro por dentro.

O lavajatismo é uma espécie de bolsonarismo jurídico: uma maneira de subverter a instituição por dentro, tomando medidas que não têm nenhum respaldo na Constituição. Na aparência, porém, a Lava Jato é mais “limpinha”, e por um momento seus agentes acharam que isso seria determinante.

Aconteceu o contrário. O bolsonarismo engoliu Sergio Moro, e sua tentativa de corroer o governo por dentro não foi bem-sucedida. É interessante perceber que Bolsonaro usou a Lava Jato como parte de sua estratégia e, depois, modulou o discurso com muita tranquilidade.

No fundo, o discurso usado para minimizar a “rachadinha” é o do “todo mundo faz”. Como se pegar o salário do assessor não fosse, necessariamente, corrupção de verdade. A acusação de peculato, mesma coisa.

Bolsonaro é uma espécie de malandro, escorregadio, que adere a cada pauta a sabor de seus interesses pessoais. Ele tem base social e gera identificação estética. O lavajatismo, não.

Aos olhos de muita gente, Bolsonaro incorpora a figura do macho: “vai lá e resolve”. Não tem discurso bonito, não tem conversa. Para essas pessoas, a Lava Jato é o discurso do bacharel, o juridiquês, que incomoda, parece elitista – e é mesmo.

Tiago Medeiros: Outro elemento é que os membros da Lava Jato antagonizavam os servidores públicos eleitos, os políticos profissionais.

É como se o lavajatismo quisesse “limpar” as escolhas políticas nacionais, que ocorrem por meio do voto. É um antagonismo preconceituoso, e não se sustentou.

O ex-presidente Lula lidera as pesquisas de opinião para 2022, com chance de vitória até em 1º turno. Como vocês enxergam as perspectivas para Bolsonaro e o bolsonarismo no ano que vem? O governo tende a desidratar ainda mais até as eleições, ou ainda há chance de uma virada?

Tiago Medeiros: Até aqui, nesta entrevista, há certa homogeneidade no nosso pensamento. Sobre 2022, a gente discute, mas ainda não sintetizou nossa análise sobre o assunto.

Eu tenho a impressão de que Bolsonaro não vai perder certa fatia do eleitorado, em torno de 18% a 20%, que são o que podemos chamar de bolsonaristas.

Tanto Bolsonaro quanto Lula têm alto índice de rejeição. Bolsonaro pela experiência atual, e Lula pela memória antipetista relativamente recente. Então, é possível que se abra espaço para uma candidatura “nem um, nem outro”.

Isso, sob um ponto de vista estritamente político. Mais para baixo, onde as interações sociais acontecem, Bolsonaro está perdendo força.

Ele foi eleito [em 2018] por quatro das cinco regiões brasileiras, com força expressiva no eixo Sul-Sudeste. Hoje, seu apoio é baseado no Centro-Oeste e no Norte. É interessante esse deslocamento.

Outra mudança é o abandono, mesmo que lento, dos evangélicos a Bolsonaro. Não é tão fácil perceber isso, porque a gente só tem acesso ao discurso dos grandes pastores. Não acessamos a mensagem dos pequenos e médios, aqueles que dão conta da vida cotidiana ordinária, de fato – e que eventualmente se veem lesados pelos grandes pastores, de diversas formas.

O setor que vai continuar com Bolsonaro até o fim são as polícias, as Forças Armadas. Em todos os demais, ainda há um declínio, por isso não sei se ele terá condições de chegar a um 2º turno.

Sinval Araújo: Minha opinião é diferente. De fato, Bolsonaro desidratou, mas me parece que esse processo chegou a um limite – 22% ou 23%. Ele não obtém pontuação inferior a essa em nenhuma pesquisa eleitoral, o que praticamente o garantiria em um 2º turno.

A eleição tende a ser polarizada entre Bolsonaro e Lula. O provável apoio de PSOL a Lula, já no 1º turno, é uma sinalização importante nesse sentido: pela primeira vez, o PSOL não lançará candidato próprio.

Bolsonaro perdeu parte das igrejas evangélicas, mas não acredito que isso diminua mais. Chegou no limite, a meu ver.

Outro aspecto que não deve ser desconsiderado é que Bolsonaro tem a máquina federal, e pode investir em programas sociais na reta final de governo para beneficiar populações onde o PT é muito forte.

A equação é complicada, porque isso geraria endividamento, e teria reações das elites. Mas, dependendo da situação, para derrotar Lula, talvez uma medida como essa fosse aceita.

A presença de militares no governo, e o ressentimento deles em relação ao PT, é outro fator relevante.

De qualquer forma, será uma eleição repleta de notícias falsas, como em 2018, e o processo será muito tensionado por ameaças golpistas.

Não acredito que tenhamos golpe. Bolsonaro não tem base suficiente para isso. Não se dá um golpe com 20% de apoiadores, a não ser que se derrame muito sangue – e as elites brasileiras e internacionais não parecem dispostas a isso.

Fabio Baldaia: Se Bolsonaro pudesse, seria um autocrata. Mas ele sabe que não pode.

O golpe de Bolsonaro é retórico, porque ele não teria capacidade de organizar e articular um processo como esse.

Até para dar golpe você precisa de um programa, um projeto minimamente coerente para definir o que fazer depois de colocar tanques na rua – e eles não sabem.

O que interessa a eles é deixar essa possibilidade de ruptura no ar, para alimentar o mito. A entrevista que ele dá à revista Veja sobre o tema é muito ilustrativa: não vai ter golpe, mas quem decide se vai ter ou não é o próprio Bolsonaro.

Tudo isso está no plano da comunicação política, da construção da imagem do “macho que resolve”, que vai dar soco na mesa se necessário.

Bolsonaro dificilmente ficará fora de um 2º turno em 2022, mas eu avalio que ele não será reeleito.

Por fim, ressalto que uma coisa é a figura de Bolsonaro, outra são os valores mobilizados pelo bolsonarismo. Ele, como indivíduo, pode ser descartado, mas as pautas bolsonaristas permanecem.

A política brasileira está parcialmente bolsonarizada: a maneira de enxergar segurança pública, política de drogas, a educação militar.

O bolsonarismo já foi vitorioso. Porque o debate público e as condições de ação política foram constrangidas, e esse movimento gerou frutos nos estados e municípios. Para voltarmos às condições culturais anteriores, é trabalho para uma década.

Por Daniel Giovanaz, no Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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