Benjamin Montgomery: o escravizado que inventou a hélice de barco



Benjamin Montgomery: o escravizado que inventou a hélice de barco

Luis Gustavo Reis*

Há séculos, milhares de inventores negros (escravizados e livres) foram soterrados pelos entulhos do descaso e tiveram suas contribuições apagadas da história. Em muitos casos, esses inventores sequer puderam patentear suas criações devido a questões jurídicas, financeiras e sociais. Outros ainda tiveram suas ideias surrupiadas, comercializadas a peso de ouro por oportunistas e apenas tardiamente conhecidas pelo público, como ocorreu com o famoso uísque Jack Daniel’s cuja fórmula foi criada por um homem negro escravizado.

Menos conhecida, porém, é a história de Benjamin T. Montgomery, que tentou patentear uma hélice para barcos, equipamento que demorou décadas para desenvolver, mas que teve o registro negado. O motivo do impedimento? Veremos adiante.

Nascido em 1819, na Virgínia (EUA), nosso personagem passou os primeiros anos de vida numa fazenda de tabaco. Leiloado num mercado de escravizados, foi arrematado por Joseph Davis e enviado para trabalhar na plantação de algodão de seu novo proprietário ao sul do Mississipi.

Astuto no trato com os poderosos e atencioso aos companheiros de cativeiro, Benjamin foi assumindo responsabilidades maiores e angariando respeito na ordem escravista. Deixou de colher algodão para administrar as lojas da família Davis, bem como passou a concentrar as demandas dos cativos que recorriam aos préstimos do congênere prestativo.

A maneira como administrava os negócios e o trato com os clientes (livres ou escravizados) impressionou Davis, que logo incumbiu Benjamim de supervisionar a totalidade das operações de compra e venda dos produtos comercializados pela “Davis Brothers”, além de delegá-lo pela logística da plantação de algodão. Nas horas vagas, raras numa rotina repleta de afazeres, Benjamin projetava pequenas invenções, aprendeu a ler e a escrever, treinou regras elementares de cálculo e ensinava todas essas habilidades aos camaradas de cativeiro – sem o consentimento e conhecimento de seu senhor.

Benjamin foi além da leitura, da escrita e do cálculo. Aprendeu outras tarefas sofisticadas, incluindo catalogação e levantamento de terras propícias ao cultivo de determinados gêneros alimentícios (topografia), aventurou-se na engenharia mecânica, aprendeu técnicas para controle de enchentes e até contribuiu na elaboração de desenhos arquitetônicos. A versatilidade e a variedade de conhecimentos que congregava eram vastas, talento que fez dele um profissional requisitado por poderosos de todas as estirpes.

Em 1840, Benjamin se apaixonou por uma antiga companheira de cativeiro que mudaria definitivamente o curso de sua vida. Seu nome: Mary Virginia Lewis. Em 24 de dezembro do mesmo ano, os noivos decidiram oficializar o matrimônio seguindo os desígnios do cristianismo. Passados alguns meses do casamento, Mary daria à luz ao primogênito do casal, Isaiah, que assistiu a chegada de mais três irmãos: Mary Virginia (homônimo em homenagem à mãe), Rebecca e William Thornton.

A vida no cativeiro não impediu que Benjamin virasse comerciante e abrisse o próprio negócio. Apesar das limitações do escravismo, o dinheiro angariado nos diferentes serviços rendeu-lhe uma modesta loja em Vicksburg, Mississippi, vizinha à plantação de seu senhor. No armazém, a clientela (livre ou escravizada) entrava e saía efusiva com a variedade de produtos comercializados: frutas, farinha, cereais e até grampos de cabelo.

Não era incomum nos Estados Unidos e alhures, que senhores de escravos autorizassem seus cativos a manterem os próprios negócios – sejam eles itinerantes (vendedores ambulantes, carregadores, etc.) ou fixos (lojas, salões de cabeleireiro, alfaiataria, entre outros). E Benjamin se enquadrava nessa moldura.

O volume de vendas e o lucro originado possibilitaram a compra da liberdade da esposa Mary. A dele, porém, preferiu não negociar. Num cálculo pragmático, provavelmente, concluiu que o prestígio conquistado na fazenda onde morava era preferível a quaisquer outras alternativas longe dali ou da salvaguarda de seu senhor. Num terreno coalhado de armadilhas, qualquer decisão equivocada poderia representar o abismo.

No começo do século XIX, as estradas de terra estadunidense eram precárias. Repletas de buracos, solo erodindo e árvores caídas interditando os caminhos dificultava sobremaneira o fluxo dos que nelas transitavam. Diante desse cenário, os rios ganhavam importância como via de comunicação a interligar as diferentes regiões do país. Por eles, transportavam-se mercadorias, animais, pessoas e toda sorte de quinquilharias destinadas a sanar o apetite de uma população ávida por consumo.

Rios sinuosos ou retos, estreitos ou largos, profundos ou rasos, a navegação também oferecia inúmeros desafios aos navegantes que, em sua maioria, dispunham de embarcações precárias e inseguras. Naufrágios e acidentes de toda ordem tiravam o sono de uma tripulação permanentemente assombrada pela iminência da catástrofe. Em rios rasos, por exemplo, o perigo era a embarcação encalhar por dias à fio sem o devido reparo ou socorro, o que acarretaria prejuízos financeiros, materiais e humanos aos responsáveis pela empreitada marítima. A invenção da máquina à vapor no século anterior, que possibilitou os primeiros meios mecânicos de transporte e substituiu o barco à vela pelo à vapor, não foi suficiente para resolver determinados problemas.

As notícias sobre as desventuras marítimas eram conhecidas por parte dos moradores do Mississippi, território serpenteado por rios caudalosos e extensos. Benjamin Montgomery ouvia atento as notícias e começou a amadurecer uma ideia que o atormentava: criar uma hélice para barcos à vapor.

Confabulou para Mary e alguns companheiros seu intento, mas as devolutivas pecaram pela falta de entusiasmo. Todos os dias, finalizada a jornada de trabalho, Benjamin se sentava em sua escrivaninha e passava horas calculando, rabiscando e tentando viabilizar a ideia. Concluiu consigo mesmo que era preciso elaborar uma hélice que permitisse aos barcos navegar facilmente tanto em águas rasas quando em profundas.

Foi somente em meados de 1858 que o protótipo estava pronto. Após longos anos matutando, Benjamin havia desenhado uma hélice específica de barco à vapor muito mais eficiente que qualquer outra anterior. Ao observar as pessoas remando em canoas, com os remos de um lado para o outro, Benjamin projetou uma hélice semelhante. O invento consistia numa pá que cortava a água em diferentes ângulos, o que diminuía a resistência no atrito, ocasionava menos perda de potência, minimizava a vibração do barco, ao mesmo tempo que melhorava o aproveitamento de energia. Tudo isso trazia maior velocidade às embarcações em rios profundos e reduzia a possibilidade de elas encalharem em rios rasos.

Orgulhoso do protótipo, que deixou os companheiros boquiabertos, Benjamin foi até o Escritório de Patentes dos Estados Unidos registrar sua invenção. Apesar da contribuição inegável para navegação, o pedido de patente foi negado e ele não pode registrar a hélice em seu nome. O motivo da recusa: Benjamin era escravizado, e escravizado não era considerado cidadão nos Estados Unidos da América.

Ao saber da malograda tentativa de seu cativo, Joseph Davis tentou fazer o registro e também teve o pedido recusado – os funcionários do governo sabiam quem era o verdadeiro inventor.

Durante anos, a invenção de Benjamin foi utilizada largamente na navegação sem que ele fosse devidamente reconhecido. Em 1863, sua hélice chegou a ser exibida na prestigiada feira Western Sanitary Fair, em Cincinnati, na cidade de Ohio, e era observada com admiração e curiosidade. Afinal, um escravizado havia mudado definitivamente a história da navegação.

Após a invenção da hélice, Benjamin dedicou sua vida aos negócios que conquistou. Durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), lutou lado a lado no front com àqueles que defendiam o fim da escravidão. Ao retornar da guerra, agora liberto do cativeiro, comprou secretamente a fazenda de seu ex-senhor. O segredo era necessário porque, embora abolida a escravidão, a venda de terras para negros era ilegal no Mississippi. Ao comprar a fazenda, Benjamin tinha o objetivo de transformar o local em uma “comunidade exclusiva para pessoas de cor”, conforme ele mesmo descreveu num anúncio publicado no jornal Vicksburg Daily Times.

A fazenda pouco prosperou e o sonho de Benjamin virou um terrível pesadelo após recorrentes hostilidades, ataques e depredações cometidas pelas comunidades brancas vizinhas. Somado a isso, a drástica queda no preço do algodão, sucessivas colheitas ruins, redução de crédito e o alto endividamento levaram Benjamin à falência.

Afogado na melancolia, agravada pela morte repentina da esposa e pelas limitações impostas por um acidente que paralisou partes de seu corpo, Benjamin T. Montgomery faleceu em 12 de maio de 1877.

Passados 10 anos de sua morte, o advogado do mesmo Escritório de Patentes dos Estados Unidos que havia negado o registro da hélice publicou o seguinte trecho no jornal: “se o modelo de hélice do escravo pudesse ser adquirido e exibido na Feira Mundial, no mesmo espaço que o modelo de barco do grande emancipador [o presidente Abraham Lincoln], isso atrairia a atenção de milhares. Entretanto, tenho a impressão de que o modelo de Lincoln sofreria pela comparação.”

A escravidão impediu Benjamin de registrar sua invenção, mas não conseguiu apagar suas contribuições: a força de sua trajetória implodiu todas as barreiras que tentaram obstaculiza-lo. Queira-se ou não, o legado de Benjamin T. Montgomery foi patenteado pela história.

*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor do livro Ensaios Incendiários sobre um mundo normatizado (2021). Artigo originalmente publicado no portal Pragmatismo Político

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