“Assim como o coronavírus, o agrotóxico adoece e mata”, alerta imunologista



“Assim como o coronavírus, o agrotóxico adoece e mata”, alerta imunologista

Nem mesmo a pandemia da Covid-19 foi capaz de frear a liberação dos agrotóxicos no Brasil. Na semana passada, foram mais 22 substâncias autorizadas pelo governo Bolsonaro, totalizando 150 apenas este ano.

Conforme monitoramento da Repórter Brasil, somente durante a quarentena, iniciada em março, foram publicados registros de 96 novos produtos, sendo 62 destinados para agricultores e 34 para a indústria. 

As aprovações parecem seguir o ritmo acelerado de liberação do primeiro ano do governo, quando 474 novas substâncias foram autorizadas - o maior número da série histórica. No total, desde que Jair Bolsonaro (sem partido) chegou ao poder, 624 agrotóxicos foram liberados.

Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, a imunologista Mônica Lopes Ferreira, pesquisadora do Laboratório de Toxinologia Aplicada do Instituto Butantã, alerta sobre os riscos que os produtos tóxicos trazem para a saúde dos brasileiros. 

No segundo semestre do ano passado, Ferreira foi convidada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para liderar uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde, que tinha como objetivo analisar os 10 agrotóxicos mais usados no país.

O estudo constatou que não existe uma dose segura para o uso dos pesticidas, ou seja, todos são extremamente tóxicos ao meio ambiente e à vida, em qualquer concentração, mesmo as mínimas indicadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

“Estamos, hoje, diante de um inimigo invisível, que é o vírus. Olha o que esse vírus está fazendo com o mundo. Ele é invisível e está adoecendo e matando. O agrotóxico também é invisível. Quando estou comendo uma maça, não enxergo o agrotóxico nela. Quando tomo água, não enxergo o agrotóxico. Mas ele está presente. E assim como o coronavírus, o agrotóxico também adoece e mata”, afirma a especialista, que virou alvo de perseguições após comprovar que não há dose segura para o uso das substâncias químicas.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, o número de intoxicação em decorrência da exposição por agrotóxicos agrícolas mais do que dobrou entre 2007 e 2017, subindo de 2.181 casos para 5.068. 

Segundo Ferreira, a exposição frequente às substâncias pode fragilizar até mesmo a resposta do nosso corpo à infecção pelo novo coronavírus. 

“Se passo a vida tomando uma água contaminada por um coquetel de agrotóxicos e com alimentos contaminados, é óbvio que não tenho saúde. Que não estou saudável, que ficarei mais frágil ao coronavírus ou a qualquer outro patógeno. Uma bactéria ou qualquer outro vírus”, complementa.

Na semana passada, a Fiocruz publicou um documento recomendando um controle mais rígido dos agrotóxicos nas águas disponibilizadas para a população. Novas regras do Ministério da Saúde aumentam de 27 para 37 o número de substâncias a serem testadas.

A Fundação recomenda a inclusão de mais 35 substâncias, entre elas produtos que hoje não são testados na água. Os pesquisadores recomendam ainda uma redução geral nos valores máximos permitidos para o volume de cada agrotóxico na água, assim como a a criação de um mecanismo para controlar a mistura de diferentes substâncias.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: A liberação dos agrotóxicos foi considerada uma atividade essencial durante a quarentena. O que as políticas do governo Bolsonaro, que quebrou recorde de aprovação de agrotóxicos em 2019, e mais essa liberação recente em meio à pandemia significam para a saúde pública brasileira?

Mônica Lopes Ferreira: Por que em um momento de pandemia, quando o assunto da ordem deve ser o coronavírus, estamos falando de agrotóxicos? É porque, infelizmente, o governo não parou com essas medidas que são tão contrárias, que implicam diretamente na saúde de todo mundo, tanto quanto o coronavírus.

De fato, o que estamos vendo é que teremos uma continuação dessa liberação desenfreada. São 150 novos agrotóxicos apenas este ano, muitos deles proibidos em outros locais, como por exemplo na União Europeia. Muito deles são proibidos porque causam danos à saúde humana e isso está para lá de documentado. É um momento muito distinto que estamos vivendo e ainda temos que lidar com essa questão do agrotóxico neste momento de pandemia.

Nós estamos vivendo um abismo. Além do fato da liberação, estamos passando hoje por um momento em que o que mais se fala é a ausência de EPI [Equipamentos de Proteção Individual] para os profissionais da saúde. Da ausência de respiradores para as pessoas que estão morrendo. Da ausência de dinheiro, de verbas.

E neste exato momento, o que faz o governo federal e os estados? Continuam e renovam a isenção de impostos que deveriam ser pagos pelos agrotóxicos. Temos um cenário em que estamos adoecendo pelos agrotóxicos, que continuam sendo liberados e isentos de pagar impostos. 

E ainda tem um cenário mais agravante: Sabemos da presença desses agrotóxicos nas águas em praticamente todo o Brasil. E hoje, se temos mais de 600 liberados, pense que somente 27 desses são monitorados em nossas águas e nem é com eficiência.

Estamos, diariamente, de uma maneira direta, consumindo agrotóxicos. Estamos consumindo na água, no alimento e no ar. É inconcebível que essas liberações estejam ocorrendo. Essa é a palavra.

Sabemos do dano, existem muitos trabalhos que provam essa situação.  O que nós não sabemos e que não é transparente é onde estão os dados, a ciência que está sendo feita, para liberação desses agrotóxicos pela Anvisa? Onde estão esses dados, que não temos acesso?

Temos acesso às nossas pesquisas, às pesquisas feitas no mundo em relação aos agrotóxicos. Mas onde estão os relatórios, os laudos, e os testes, que foram testes para basear a liberação? Nós não temos.

Como um país que não pode fiscalizar o que tem na sua água e no alimento – só em 14 alimentos são verificados a presença de agrotóxico e somente 27 na água – pode liberar mais de 600? Não há controle nem dos já identificados. Não poderia nunca liberar essa quantidade enorme. 

Então, mesmo neste momento de pandemia, avalia que não há preocupação com o que tem chegado na mesa dos brasileiros?

Estamos, hoje, diante de um inimigo invisível, que é o vírus. Olha o que esse vírus está fazendo com o mundo. Ele é invisível e está adoecendo e matando. O agrotóxico também é invisível. Quando estou comendo uma maça, não enxergo o agrotóxico nela. Quando tomo água, não enxergo o agrotóxico. Mas ele está presente. E assim como o coronavírus, o agrotóxico também adoece e mata. 

Este momento é importante para pararmos para pensar um pouco sobre o assunto. [O agrotóxico] também é invisível, mas está presente e causa danos. Temos relatos científicos que mostram infertilidade, câncer em crianças, maturidade sexual precoce, problemas endócrinos, intoxicações. São tantos problemas juntos, derivados dos agrotóxicos, por que não queremos enxergar isso?

Na nossa água, o que tem é um coquetel [de agrotóxicos]. E a mistura desses agrotóxicos precisa cada vez mais ser estudada. O que a mistura desses agrotóxicos causa à nossa saúde. Quando junta, um com outro, o que acontece.

Ano passado, você participou de uma pesquisa que evidenciou o risco em 10 dos principais pesticidas usados no país. Existe uma dose segura de agrotóxicos, qual o consenso da comunidade científica sobre isso?

Em cima de todos os estudos que tenho lido e me debruçado sobre, o fato de encontrarmos os agrotóxicos nas águas e nos alimentos, para mim, é evidente que as doses que estão sendo usadas não são seguras.

A Fiocruz mostrou recentemente, por meio de estudo, que é preciso aumentar o número de monitoramento de agrotóxico nas águas. E esse volume de agrotóxico que é permitido deveria também ser baixado.

O que acontece hoje com os agrotóxicos é que além das doses permitidas serem muito altas, as pessoas utilizam em dose ainda mais altas do que é permitido. Então, estamos em um cenário muito complexo. De um lado, uma liberação massiva de agrotóxicos sem que saibamos que testes estão sendo feitos para que sejam liberados.

Do outro, temos o uso deles de uma maneira desenfreada. As pessoas estão pulverizando cinco vezes mais do que é permitido pulverizar. Cai no lençol freático e chega nas nossas águas.

Outro dado que saiu recentemente, do IBGE, mostra o quanto os proprietários rurais estão usando agrotóxicos. Me chamou bastante atenção porque o nosso alimento vem 70% da agricultura familiar. Só que hoje, a agricultura familiar tem usado cada vez mais agrotóxico. E por que? Porque existe uma linha de crédito para se comprar agrotóxico. Não existe uma linha de crédito para agroecologia, para plantar orgânico.

Escutei recentemente sobre a justificativa do governo sobre a liberação de agrotóxicos, dizendo que eles estão sendo liberados cada vez mais porque são produtos menos tóxicos. Um agrotóxico tem como finalidade matar pragas, insetos. Tem que ser tóxico. Essa é a finalidade dele.

Quando o governo diz: 'Ele é menos tóxico', se for menos tóxico pra matar a praga, não vai ser efetivo, não faz sentido. Se ele está dizendo que é menos tóxico para a saúde humana, está admitindo o que nós estamos dizendo: Que os agrotóxicos prejudicam a saúde humana. 

Qual a relação dos agrotóxicos com o desenvolvimento da nossa imunidade? Essa quantidade excessiva de agrotóxicos pode comprometer nossa resposta imunológica à pandemia da Covid-19, por exemplo?

O que me mantem hoje, aqui, é o sistema imune. O sistema imune e nossas células estão aqui prontos para nos defender desses agentes estranhos, vírus, bactérias. Para que o meu sistema imune esteja bom, para que minhas células estejam prontas para combater, tenho que estar em equilíbrio e ter me alimentado muito bem.

Por que o coronavírus pega mais quem tem doença? Porque as pessoas estão frágeis, desarmadas. Agora, se passo a vida tomando uma água contaminada por um coquetel de agrotóxicos, e me alimentando com alimentos contaminados, é óbvio que não tenho saúde. Que não estou saudável, que ficarei mais frágil ao coronavírus ou a qualquer outro patógeno. Uma bactéria ou qualquer outro vírus.

Quando você vai ao médico e está doente, o que ele fala é: "Uma boa alimentação vai lhe fazer bem". O que as pessoas precisam saber é que se eu for comprar uma maça, dependendo de onde ela vem, está cheia de agrotóxicos. Escutamos que temos que tomar tantos litros de água por dia, mas essa água tá cheia de agrotóxico. Quantos litros de agrotóxicos você está tomando por dia?

E qual é o caminho, a alternativa que deveria ser seguida?

O ideal seria termos a garantia que temos uma água potável. A água é essencial. Quem nos fornece a água, de maneira transparente, fazer os relatórios de análise dessa água e constatar que a água é de excelente qualidade. As outra questão são os alimentos. Se tivermos cada vez mais incentivos fiscais, incentivos de comércios para quem planta, para quem tem uma agricultura que não usa agrotóxico, a oferta seria muito maior. 

É uma discussão muito grande que requer uma mudança muito grande. Também da nossa parte, porque é cômodo ir comprar um produto sem nem saber de onde vem. Eu pago pela água, mas não cobro do Estado se ele me diga que ela está ok.

É uma mudança individual e do governo, que deve adotar medidas pró saúde humana. Eu acredito que é com a gente falando, os dados aparecendo, que as coisas começam a mudar. Não é possível que não mude. Tem que mudar e acho que vai depender muito da sociedade civil. É nosso papel.

Nos últimos anos, parece haver uma maior procura pelos produtos agroecológicos....

As pessoas pensam que não tem como fazer grandes produções, mas tem. O que temos que fazer é esses exemplos que já existem, espalhados pelo Brasil inteiro, de cultivos que são grandes e têm dado certo, para que isso seja um espelho para outros. Porque dá certo, funciona, tem funcionado no mundo inteiro, não somos diferentes.

Mesmo se no futuro fosse possível reverter a liberação dos agrotóxicos e reduzir o incentivo, o estrago ambiental e de saúde que consumimos, é possível reverter?

Depende da vivência de cada um com os agrotóxicos. Aqueles que estão trabalhando diretamente com esse produto já estão doentes. Acho que estamos trabalhando para uma próxima geração, porque nós, de alguma maneira, em menor ou maior grau, estamos doentes. 

Se os números fossem reais, teríamos todas as notificações de contaminação para os agrotóxicos. E isso talvez assustasse mais as pessoas a ponto delas se comprometerem com esse tema, com esse assunto. Hoje plantamos essa história, principalmente para a próxima geração.

Quando eu vi os dados de contaminação da água, vou te confessar que a minha própria relação com a água e com os alimentos mudou. Hoje tenho cuidados que eu não tinha antes. Precisou acontecer comigo dessa maneira, o impacto da pesquisa. Quando eu me vi com as pessoas questionando e falando, pensei: Por que está se falando tanto desse assunto quando tantos outros já falaram? E me dei conta que falei uma grande verdade. Se eu tivesse falado uma coisa sem menor importância, não teria provocado todo esse barulho.

Eu acordei, saí da zona de conforto que eu estava, e fui me cuidar. Fui cuidar dos que estavam ao meu lado e hoje eu penso duas vezes quando vou comprar algo. Tem coisas que eu planto no quintal da minha casa. Eu sei de onde está vindo o produto, que produto é esse e quem o fornece.

Vejo as pessoas perguntando se tem ou não glúten. Mas e os agrotóxicos? É com ou sem? Temos que nos preocupar. Olha aí agora. Como é importante estarmos em equilíbrio, com o sistema imune em conta. Quantas pessoas pegaram o vírus e estão assintomáticas porque provavelmente estavam com um sistema imune melhor. Isso é fruto do equilíbrio.

Fonte: Brasil de Fato

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