Depois que a empolgação dos empresários pela queda de Dilma Rousseff levou o presidente da CNI Robson Andrade a falar na criação de uma jornada de 12 horas diárias de trabalho, numa declaração que repercutiu tão mal que foi rapidamente desmentida, é bom prestar atenção a uma notícia divulgada pela agência Nikkei, a mais importante do Japão, reproduzida nas páginas do Valor Econômico no início deste mês.
Conforme o Ministério do Trabalho japonês, no ano fiscal encerrado em março de 2016 ocorreram 96 mortes decorrentes de "males oficialmente relacionados ao excesso de trabalho." No mesmo período, diz a agência, ocorreram 93 suicídios ou tentativas de morte voluntária provocadas pelo excesso de trabalho -- no Japão, a terceira maior economia do mundo, onde já surgiu uma palavra, "karoshi", para designar a morte por excesso de trabalho.
Naquele continente que se tornou a principal referência para o crescimento capitalista das três últimas décadas, transformando-se no destino preferencial de investimentos das grandes empresas da Europa e Estados Unidos, o caso japonês é chocante pelo grau de desenvolvimento do país e sua posição na economia mundial. Mas não é o mais escandaloso pelo números.
"Todo ano, cerca de 600 000 pessoas morrem na China, supostamente devido ao excesso de trabalho," diz a reportagem. Entrevistado, um professor da Universidade Wuhan, Lu Shangbin, deu uma explicação simples e previsível: "os trabalhadores sofrem uma pressão intensa das empresas que buscam sempre maximizar seus lucros."
Ao contrário do que se poderia imaginar pela visão otimista sobre os benefícios sociais gerados pelas novas tecnologias, não faltam tragédias mortais em empresas consideradas modernas e avançadas. Em 1991, na primeira vez que se reconheceu um suicídio provocado por excesso de trabalho no Japão, a vítima era um dos 7000 funcionários da Dentsu, uma miniatura do universo trabalhista que tanto empolga os aliados de Temer. Maior agência de propaganda do país, a empresa possui uma cúpula de executivos muito bem remunerados, recrutados nas melhores universidades e uma massa de empregados explorados no limite de suas forças. Possui influência nos meios de comunicação e no governo e gosta de mobilizar os funcionários com slogans típicos de intimidação interna ("O cliente em primeiro lugar"). No final de 2016, quando a empresa foi denunciada em outro caso de suicídio provocado por excesso de trabalho, o presidente da empresa, Tadashi Ishii, renunciou ao cargo.
Em outros países da região, informa a Organização Internacional do Trabalho, a carga excessiva de trabalho atinge 32% da mão-de-obra na Coréia do Sul, 30% em Hong Kong, 25% em Cingapura e 21% no Japão. De acordo com a OIT, considera-se que há excesso de trabalho quando os empregados cumprem uma jornada de trabalho acima do limite de 49 horas semanais -- uma situação que os trabalhadores brasileiros de idade superior a 50 anos conhecem muito bem.
Até a Constituição de 1988, o trabalho legal no Brasil estava na fronteira do excesso -- chegava a 48 horas por semana. A Constituição de 1988 estabeleceu o limite de 44 horas no artigo sétimo. Apesar do ruído feito na época, era um teto já superior ao de boa parte dos países considerados menos selvagens na matéria relações de trabalho. Por exemplo: 38,3 horas na Itália; 40,8 na Alemanha; 42 horas nos Estados Unidos. Nada a ver com Noruega (34 horas semanais) ou Austrália (34,8).
No Brasil, a elevação da jornada é um dos pratos principais da estratégia da pinguela Temeer-Meirelles de derrubar a CLT pelas bordas, a partir da noção de que o negociado deve prevalecer sobre o legislado, para permitir a flexibilização de normas que estão no cerne -- artigo sétimo! -- da Constituição. Em negociações empresa por empresa, ou mesmo setor por setor, onde os trabalhadores são colocados em posição de fraqueza com poucos instrumentos de barganha, os resultados podem se mostrar incertos inclusive em assuntos que pareciam resolvidos. Um dos mortos recentes do Japão era um cidadão forçado a cumprir 100 horas extras, contra um acordo, já péssimo, que limitava esse período a 70 horas.
Além de sacrificar a qualidade de vida dos empregados de modo inaceitável, para atender a uma vontade óbvia de elevar os ganhos dos acionistas e executivos com direito a bônus de modo brutal, este movimento envolve outra questão.
A elevação da jornada de trabalho não é só um recurso iníquo do ponto de vista social. Também é um atalho especialmente primitivo para uma empresa elevar os lucros, ruim para a economia de um país e o progresso de uma sociedade, pois seu ponto de partida é um horizonte de exclusão social.
Desde os tempos em que o regime escravo era um sistema protegido pelo Estado se sabe que todo cidadão tem um limite no esforço -- físico e intelectual -- que dedica ao trabalho. Ultrapassada essa fronteira, acontece aquilo que todos sabem: os reflexos diminuem, a atenção se dispersa, o rendimento cai, os acidentes se reproduzem e, no limite, mostram os dados asiáticos, as mortes se elevam.
Um cálculo mencionado pela Nikkei informa que um aumento de 10% na jornada de trabalho produz uma queda de 2,4% na produtividade por trabalhador. Isso quer dizer que ele vai se tornando cada vez mais caro na medida em que as horas extras aumentam.
E aqui chegamos ao centro da questão colocada pelo esforço do governo Temer e seus aliados para quebrar a jornada de 44 horas - patamar que, em outra conjuntura, a maioria do movimento sindical tentou, sem sucesso, reduzir para 40 horas.
Não se planeja modernizar a economia, nem estimular de verdade a inovação tecnológica nem elevar a produção de riquezas num país com tantas carências desesperadas para vencer. O plano é simplesmente instituir um regime de supressão de direitos, inclusive o maior de todos - o direito à vida.
Fonte: Brasil 247, por Paulo Moreira Leite, jornalista e escritor