As literaturas africanas além das premiações internacionais



As literaturas africanas além das premiações internacionais

É importante nos dias que correm que haja mobilidade: mobilidade de textos, mobilidade de pessoas

A literatura africana – ou melhor, as literaturas africanas estão em alta.

Em 2021, prêmios importantes foram para autores do continente: o Camões, voltado para escritores de língua portuguesa, ficou com a moçambicana Paulina Chiziane; o Goncourt, de literatura francesa, foi para o senegalês Mohamed Sarr; e o Nobel, para o tanzaniano Abdulrazak Gurnah.

Para a professora de literatura Vanessa Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os prêmios funcionam como uma resposta ao aumento da violência racista, e ecoam reivindicações nascidas na sociedade civil, como o movimento Black Lives Matter.

“Ah, se não rolasse essa violência, esse levante da extrema direita, esse recrudescimento da violência racista, esses prêmios não aconteceriam? Não é isso que eu estou dizendo. Mas é uma coincidência que pra mim não é feliz. Pra mim, Abdul (Gurnah) já deveria ter sido reconhecido pela grandeza do trabalho há muito tempo, e a Paulina claramente já mereceria esse prêmio Camões há muitos anos”, ressalta.

Sávio Freitas, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), aponta que os prêmios são importantes, mas têm caráter mercadológico.

“A premiação dos textos africanos caminha muito com a questão da indústria cultural, porque aí os escritores começam a ganhar visibilidade. Eles lutam muito pra ganhar esses prêmios porque conseguem publicar os livros e fazer circular”, afirma.

Paulina Chiziane, ganhadora do Camões, só tem um livro publicado no Brasil por uma editora grande: é o romance “Nitekche”, lançado pela Companhia das Letras em 2004. Com a visibilidade alcançada pelo prêmio, a expectativa é de que mais obras dela cheguem ao público brasileiro. Um reconhecimento tardio para aquela que é considerada a primeira romancista mulher de Moçambique.

Em 2016, Paulina deu uma entrevista ao Brasil de Fato em que comentou sua relação com a escrita.

“Primeiro foi o prazer de ter uma caneta e um papel em branco, mas com o tempo fui percebendo que a escrita é um espaço para negociar a minha própria identidade: quem eu sou, o que faço, quais são os meus sonhos. O que sonho para a minha família, meu país, e o mundo que gostaria de ver construído. Eu não faço esforço nenhum pra contar nenhuma história. Acredita que às vezes pego meu gravador, saio para a rua, converso com a primeira mulher que passa e já tenho uma história. Porque todas são uma história que precisa de atenção e precisa ser escrita”, afirma.

E o que os leitores encontram nos livros de autores africanos não são apenas temas e histórias diferentes daqueles que aparecem na literatura europeia ou estadunidense. Muitas vezes, a forma de narrar é diversa.

O professor Sávio Freitas usa como exemplo a própria Paulina Chiziane, que se considera uma contadora de histórias em volta da fogueira. “Balada de amor ao vento”, romance de estreia lançado em 1990, começa com uma vela acesa e termina com o apagar de um candeeiro.

“Perguntei a ela na live: qual a sua relação com o fogo? Ela disse: ‘acendo minha fogueira todo dia. Eu acendo fogueira, eu corto lenha todo dia’. Os fatos, ela conta como se estivesse cortando lenha, fraturados. Por isso que são desordenados. Mas eles se intersectam pelo calor do fogo. Isso é uma característica do romance moçambicano, da palavra poética moçambicana”, recorda.

A pesquisadora e professora moçambicana Sara Jona aponta que a academia está mais atenta à produção literária dos países africanos. Um universo onde ainda há muito a ser descoberto.

“É importante nos dias que correm que haja mobilidade: mobilidade de textos, mobilidade de pessoas, mobilidade de pesquisadores e de alunos. Durante muitos anos sobre Moçambique se conheceu 3 ou 4 autores. Eu, há dois anos, fiz um estudo que recenseei quase 200 autores. E fiz esse recenseamento sozinha. acredito que destes quase 200 autores, há uma margem de erro muito grande”, destaca.

Este encontro com as literaturas africanas também é um encontro com realidades que muitas vezes parecem distantes, como destaca a professora Vanessa Teixeira.

“A gente sabe que são vozes de dentro, e a gente sabe que a literatura nasce desse espelhamento: um espelho que vai ser distorcido, contorcido, refeito, mas que nasce dessa vivência, deste lugar com a realidade. Acho que esses romances, essas obras dão um estalo, deixam aquele gostinho de quero-mais – principalmente porque são grandes escritores, grandes obras – pra alguém que chegou em uma livraria, ficou curioso, pegou esse título e pensou: 'gente, isso eu não sabia, quero saber mais'”, afirma.

E quem quiser saber mais sobre as literaturas africanas, vale a visita ao Instagram do Grupo de Pesquisa sobre Moçambique e Africanidades, coordenado pelo professor Sávio Freitas. Lá tem várias lives com pesquisadores e escritores, inclusive com a Paulina Chiziane.

Por Raquel Setz, Brasil de Fato

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