Artigo: O desembargador Eduardo Siqueira e a desculpa sem vergonha



Artigo: O desembargador Eduardo Siqueira e a desculpa sem vergonha

Por Djefferson Amadeus*
 
É difícil – aliás, dificílimo! – saber quais foram as condutas mais vergonhosas praticadas por um dos representantes da Justiça brasileira, o desembargador Eduardo Siqueira, durante as conversas (filmadas) com os guardas municipais. Teve de tudo – ou quase tudo: “carteirada”, xingamento, rasgou a multa e jogou-a no chão, além do famoso: “conheço o fulano, beltrano e cicrano”. Impressionante. Parecia um filme sobre a história do Brasil, ou melhor: um filme sobre a parte do Brasil que nos faz sentir muita vergonha de ser brasileiros.

E não parou por aí: em um novo vídeo que circula nas redes, o desembargador Eduardo Siqueira, no meio da conversa, falou em francês com os guardas municipais para demonstrar que era superior. Confesso a vocês que imaginar pessoas pobres e negras sendo julgadas por pessoas assim faz com que eu passe mal diante de tamanha indignação.

O pior de tudo, porém – e enganaram-se aqueles que pensaram que a coisa não poderia piorar – foi ler um trecho da nota em que o desembargador disse ter sido vítima de uma armação. Em suas palavras: "Infelizmente, perseguido desde então, ontem, acabei sendo vítima de uma verdadeira armação.”

Em 2020, caros leitoras e leitores, embora a concorrência seja grande, não sei se haverá um fato cuja a ausência de vergonha tenha aparecido tão manifestamente (sem contar os atos do Presidente da República, evidentemente).

Lembrai, senhoras e senhores, que o arbítrio, aviltamento e a humilhação em face de um guarda municipal, que apenas cumpria suas funções, se deu por um representante da justiça. Ou seja: o desembargador, que deveria ser o responsável por desembargar a dor, foi o causador da dor.

E, em vez de desculpar-se, valeu-se de um argumento inominável para dizer que era vítima. Aliás, a bem considerar, talvez tenha razão, afinal: que fardo olhar para o espelho, não?

Sobre o argumento jurídico utilizado pelo desembargador, para além da discussão quanto à correção ou não de sua exposição, penso que o exemplo serve – e por isso utilizarei aos meus alunos e alunas – para demonstrar porque (jamais) devemos estudar (somente) o direito. Isto porque, como bem percebeu meu amigo e grande jurista Paulo Ferrarese, quando pediram aos londrinos para que apagassem as luzes à noite, durante a 2ª Guerra Mundial, com o intuito de dificultar os bombardeios do inimigo, nenhum londrino pensou em deixar as luzes acesas, mesmo a lei assegurando a eles o direito de deixar as luzes acesas; e simplesmente não exerceram o seu direito porque o exercício deste direito colocaria todos em risco.

Se se olha apenas para o direito, portanto, sem estudar a história, filosofia, psicanálise e etc, até faz sentido o argumento do desembargador, assim como fez sentido para Eichmann, durante o nazismo, aplicar a lei e levar os judeus aos campos de concentração.

A propósito, a desculpa de que teria sido vítima de uma armação, fez com que eu lembrasse de Rubens Ricupero e Boris Casoy. Estes, ainda que de forma indireta, também se sentiram vítimas de uma armação e, por isso, culparam as câmeras por suas atitudes. Boris Casoy, por exemplo, enquanto era exibida vinheta de dois garis desejando boas festas de fim de ano, externou – aos risos – o seguinte: “Que merda! Dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras...

Lembram como foi o pedido de desculpas do Boris Casoy quando fora processado? A fala "vazou" e não deveria ter ido ao ar. Os dizeres não foram proferidos no programa, mas no intervalo do telejornal. Ah, sim. Coitado do Boris...

O Tribunal entendeu que “a fala foi feita em momento de descontração, teoricamente fora do ar.” Resultado: absolvido. Claro: a culpa foi da câmera, oras. Ou melhor: do câmera desatencioso... A propósito, alguém se arrisca a dizer o que aconteceu com o câmera que, por descuido, deixou vazar? Pois é. E o Boris? Bem, com o Boris aconteceu aquilo que uma sociedade racista, preconceituosa e que odeia pobre tem a oferecer: continuou âncora do Jornal e ainda saiu como vítima.

Daí se explica porque o guarda municipal que cumpriu suas funções dentro da legalidade disse que não consegue dormir. Ele sabe a resposta que o direito tem para os pobres neste país. Quem quer entender como o direito protege negros e pobres deve ler o livro do Carlos Alberto Medeiros, “Na lei e na raça”, em que ele demonstra as primeiras aplicações da lei Afonso Arinos, no Brasil.

Otelino, homem negro, não conseguiu o emprego... porque era negro. E gravou toda a violência do grito dado pelo dono da clínica que se recusara a contratá-lo. Só que o dono da clínica era homem poderoso e presidente da associação nacional de psiquiatria. Resultado: ele conseguiu uma declaração do próprio Afonso Arinos (autor da lei) dizendo que não era racista. Resultado: Otelino foi perseguido e quase processado por calúnia.

– E você ainda tem esperança de mudança, mesmo sabendo que não acontecerá nada com o desembargador que humilhou o guarda municipal? Indagou-me um amigo.

A resposta que dou é a mesma de sempre: meu vovô veio da Bahia, ainda criança, e dormiu na rua. Foi de tudo, até tornar-se alfaiate. E hoje aqui estou. Então a mim não foi dado o direito de não ter esperança; carregá-la comigo é um dever de gratidão – uma questão de princípio, portanto.

*Djefferson Amadeus é advogado criminalista, mestre em direito e hermenêutica filosófica, pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio, pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ, membro do MNU, da IANB, da FEJUNN e da ABJD. 

Artigo publicado originalmente no Brasil de Fato

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