A coleta de flores sempre-vivas no chão da porção meridional da Serra do Espinhaço, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, é reconhecida como prática sustentável agrícola tradicional. Entre a beleza da flora e a dureza do ofício, a prática centenária é importante para o modo de vida de 12 comunidades tradicionais no território.
Em março de 2020, a coleta de flores sempre-vivas foi reconhecida como Patrimônio Agrícola Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A prática extrativista faz parte de um sistema equilibrado com a natureza. A chamada “panha” de flores sustenta a utilização de quintais produtivos e a criação de gados de fundo de pasto, ou seja, soltos e sem ameaça ao bioma local.
Maria de Fátima Alves, mais conhecida como Tatinha, é uma das apanhadoras de flores sempre-vivas e faz parte da coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex).
"É uma riqueza muito grande de produção nas comunidades e algumas conseguem produzir de tudo. A única coisa que precisa vir de fora é o sal. O resto tudo eles conseguem produzir, e sem veneno nenhum. As atividades do apanhador de flor eu acho que é como um carro-chefe porque tem a economia. Tem também as plantas medicinais que garantem a saúde, tem as benzeções, as crenças, religiões, os casamentos. Então o modo de vida envolve tudo isso. É toda essa tradicionalidade repassada de pai para filho. É esse povo da Serra fazendo ciência e passando isso para os seus descendentes", explica.
Mas essa ciência popular e ancestral, feita com a natureza durante séculos, encontra barreiras para ser praticada. De acordo com Tatinha, a instalação de parques de conservação no local dificulta a tradição na coleta de flores. Enquanto Codecex, ela defende a presença das comunidades para a manutenção da biodiversidade local.
"Até hoje eu não consigo entender uma natureza intocável, sem a presença humana [das comunidades tradicionais da Serra do Espinhaço]. Então, a área que temos lá é manejada, tem esse cuidado do homem, e, lógico, que com respeito. Mas tem a mão do homem ali, não é intocável. Então quando eles excluem, expropriam as comunidades, expulsam de seus territórios, a natureza vai acabando", ressalta.
Ao mesmo tempo, Tatinha afirma que apenas as comunidades tradicionais são atingidas pelas áreas de instalação de parques nacional e estaduais de conservação. Ela cita que atividades como o monocultivo de eucalipto e a mineração ficam de fora dos planejamentos ambientais.
Em 2002, foi criado o Parque Nacional das Sempre-Vivas, administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). De acordo com a Codecex, sem consulta pública e proibindo a coleta de flores no local. Na esfera estadual, os parques que adentram a Serra do Espinhaço são as unidades de Biriri e do Pico do Itambé, geridas pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF) de Minas Gerais.
Caminhos distantes
Entre as disputas por um modelo de afirmação da apropriação popular ou de administração institucional, a região meridional da Serra do Espinhaço é o único local do planeta que guarda as cerca de 90 espécies de flores sempre-vivas.
Há uma cadeia de comercialização das flores que garantem renda para as comunidades tradicionais. A maioria delas não agrega valor após uma coleta que pode levar a jornadas de meses longe de casa em uma altitude que varia entre 1.400 e 1.600 metros.
As caminhadas também são atentas a cada centímetro, já, de acordo com a apanhadora Dona Geralda Soares Silva, as flores não guardam locais fixos na imensidão do campo. Geralmente são dezenas de quilômetros percorridos.
"É uma profissão sofrida, porque é longe e você anda muito. Mas quando você chega e vê aquele campo branquinho parece que até o cansaço acaba. É tão satisfatório que você nem lembra mais que você tem que caminhar de duas a três horas para voltar", salienta.
Dona Geralda mora na comunidade de Macacos, no município de Diamantina, em Minas, e costuma subir a serra desde pequena, em jornadas que podem durar o dia inteiro ou até meses fora de casa.
Dona Geralda cita que o descanso noturno e as refeições, da atividade que é coletiva, são feitas nas lapas. Ou seja, nas grutas disponíveis. Assim, ela guarda sempre a memória afetiva do café quentinho pela manhã e do céu estrelado antes de dormir.
Mas, para além da beleza natural, Dona Geralda também chama a atenção para se conhecer os aspectos sociais do território, nem sempre visíveis no turismo convencional.
Como exemplo, a apanhadora de flores cita a dureza do ofício e também as dificuldades encontradas ao se deparar com as regras dos parques de conservação.
O fortalecimento para permanecer na atividade está enraizado na cultura que se expressa de diversas formas. Um exemplo está na poesia “Um sonho, a festa das sempre-vivas”.
Subindo a Serra saímos todos a procurar
E lá no alto campo branquinho, todo florido
O espetáculo vai começar
O sol aponta no horizonte
Clareando forte todo o lugar
E a florzinha abre os olhinhos
Olha o horizonte e começa a bailar
No vai e vem de encantar
Toda a plateia que aqui está
É a sempre-viva, florzinha bela
Campo florido, cenário lindo deste lugar
É a bailarina das sempre-vivas sempre a bailar
É um cenário de beleza igual
Teatro da vida, apanhadores todos felizes, no seu habitat
Com as mãos cheias daquelas florzinha a coletar
Campo branquinho, matas verdinhas
E os passarinhos, sempre a cantar
As borboletas, tudo é lindo neste lugar
Dormir na lapa, céu estrelado, fogão de pedra
Foguinho aceso, café quentinho
Comida boa, banho gelado
E um cenário de beleza igual
E o espetáculo vai acabar
Os apanhadores de sempre-vivas
Para a suas casas irão voltar
Mas ano que vem, o teatro da vida vai recomeçar
E as bailarinas das sempre-vivas lá vão estar
Num vai-e-vem de encantar
E os apanhadores todos felizes lá vão estar
Para as sempre-vivas coletar.
Outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com o ICMBio e o IEF para consultar sobre os questionamentos feitos pelas fontes desta reportagem. Até o momento de publicação, não houve resposta.
Fonte: Brasil de Fato, por Daniel Lamir, com a colaboração de Afonso Bezerra.