Não há, em nenhum livro de história, um precedente que indique o que pode acontecer nos Estados Unidos. "Estamos entrando em território inexplorado", analisa ao Brasil de Fato o chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade da Geórgia, Scott Ainsworth.
Para ele, até o dia 20 de janeiro, quando Joe Biden assume oficialmente a Casa Branca, os americanos devem viver um "período sensível", onde todos os olhos se voltam para o vice-presidente Mike Pence.
O protagonismo inesperado do ex-governador de Indiana ganha força à medida que senadores e representantes vêm a público apoiar a invocação da 25ª Emenda Constitucional dos Estados Unidos. A regra, que já foi invocada em outros momentos, diz que, se o presidente em exercício não tiver plena capacidade de exercer seu trabalho, então o vice-presidente deve fazê-lo.
"Existe, mesmo, muito apoio à implementação dessa emenda, mas não acho que Pence consiga todos os votos necessários para colocá-la em ação, sobretudo na Câmara dos Representantes", diz à reportagem o professor de Teoria Política da Universidade da Georgia, Alexander Kaufman.
Segundo o docente, invocar ou não essa regra não muda o curso das coisas, e que Donald Trump será retirado da Casa Branca mesmo que se recuse a sair. "A não ser que Trump tenha sucesso aplicando um golpe de estado", pondera Kaufman.
O adendo é importante porque muitos especialistas consideram os eventos da última quarta-feira (6) uma pequena "amostra" do poder do republicano e do estrago de um golpe.
Momentos antes de o Congresso se reunir para confirmar a posse do democrata Joe Biden, Donald Trump falou aos seus apoiadores. O republicano, mais uma vez, voltou a afirmar que as eleições foram fraudadas e finalizou seu discurso de forma enfática: "Eu não vou conceder".
Encorajados por Trump, a multidão marchou até o Congresso e invadiu o Capitólio, deixando rastros de vandalismo e violência. Uma mulher foi baleada no peito e não resistiu aos ferimentos.
A Guarda Nacional foi acionada para restabelecer a paz e assegurar a integridade dos representantes, que voltaram ao plenário depois de mais de seis horas de interrupção.
Como esperado, diversos senadores republicanos votaram a favor de certas objeções, mas pelo menos um deles mudou de ideia depois do ataque ao Capitólio.
A senadora Kelly Loeffler, que perdeu a reeleição no seu estado da Geórgia, usou seu tempo de discurso para explicar a alteração de seu posicionamento. “Quando cheguei em Washington nesta manhã, tinha toda intenção de me opor à certificação. Contudo, depois dos eventos que aconteceram hoje, sou obrigada a reconsiderar e não posso, em boa consciência, objetar”, disse sob aplausos dos colegas.
Dois pedidos de objeções foram discutidos, referente a votação no Arizona e na Pensilvânia, mas ambos foram negados pelo Congresso americano, depois de avaliações independentes, que renderam discursos memoráveis. O republicano Mitt Romney, por exemplo, ao reconhecer a derrota de Trump, disse: “a melhor forma de mostrar respeito aos eleitores que estão insatisfeitos é dizendo a verdade. Esse é o peso e o dever de um líder”.
Às 3:30 am do horário local (5:30 am do horário de Brasília), a vitória de Joe Biden foi confirmada para assegurar sua posse no dia 20 de janeiro. Kamala Harris será, oficialmente, a primeira mulher eleita vice-presidente dos Estados Unidos.
Os democratas chegam ao poder com dois desafios importantes nas mãos, conforme explica ao Brasil de Fato a cientista política Alexa Bankert. "O primeiro desafio é comum a todas as administrações, que é definir uma agenda política. Acredito que o Biden deva focar na saúde, na sustentabilidade, na reforma migratória e em uma política externa que restabeleça a confiança dos aliados", e continua, "o segundo desafio vai ser iniciar um movimento nacional que fortaleça a democracia; que revitalize nosso compromisso com a democracia, mesmo que o nosso partido esteja no lado derrotado".
Lanterna dos afogados
O atual presidente dos Estados Unidos foi derrotado nas urnas, em eleição realizada em outubro do ano passado. Joe Biden, o candidato democrata, acumulou 306 votos do Colégio Eleitoral, enquanto Trump somou apenas 232 votos.
Por conta da pandemia, todos os estados do país aceitaram votos por correio – uma modalidade que Trump, sem provas, acusa de ser fraudulenta.
Todas as investidas do republicano para tentar reverter ou anular o resultado das eleições não surtiram efeito. O presidente teve, inclusive, uma conversa grampeada com o secretário da Georgia, em que urge o homem a "encontrar" 11.780 mil cédulas com votos a seu favor, o que lhe garantiria a vitória no estado.
Para a imprensa americana, a ligação de Trump foi mais "escandalosa" que o Caso Watergate, que culminou na renúncia do então presidente Richard Nixon.
Geórgia
Historicamente um território republicano, este ano a Geórgia foi azul. Joe Biden levou 49,5% dos votos válidos, enquanto Trump acumulou 49,3% dos votos. A democrata no estado chegou também ao Senado, numa eleição apurada na quarta-feira, 6 de janeiro. Os candidatos Jon Ossoff e Raphael Warnock ganharam por uma diferença de menos de 1% de seus adversários republicanos, e levaram o controle do Senado para as mãos dos democratas – o que não acontece desde 2014.
"Ainda é cedo para dizer se a Geórgia é um estado-pêndulo, porque, historicamente, somos republicanos", afirma Banker.
De acordo com a docente, uma série de fatores se alinharam para fazer com que a população fosse às urnas votar em um candidato democrata. "Acredito que o ataque que Trump fez, em 2017, a John Lewis, foi um ponto bastante importante para explicar essa eleição", diz.
Falecido em julho de 2020, John Lewis foi um político e ativista muito respeitado na Geórgia e um dos maiores críticos do governo de Trump. Em 2017, os dois chegaram a trocar farpas, com o republicano, dizendo que o distrito de Lewis "era horrível e mal conservado", o que provocou a ira da comunidade local.
Apesar da vitória "azul", Bankert ressalta que o estado ainda está sob controle republicano – e talvez por isso a legitimidade de sua eleição não tenha sido tão questionada. "Nosso governador é republicano, e a votação aconteceu sob sua liderança. Acho que, se fosse um democrata no poder, muita gente poderia duvidar da veracidade do processo eleitoral".
À luz deste raciocínio, é preciso ter em mente que o novo presidente americano também foi eleito sob uma gestão republicana, com o poder de apontar os profissionais mais competentes para os principais cargos de segurança do país.
"É engraçado pensar que Donald Trump tem pânico de perder e até agora não aceita sua derrota", conta Kaufman, "mas suas atitudes estão fazendo com que milhões ou bilhões de pessoas o vejam perder, ao vivo, por vezes seguidas".
Fonte: Brasil de Fato, por Eloá Orazem, correspondente em Los Angeles (EUA)