A terceirização ilimitada ameaça o futuro do país



A terceirização ilimitada ameaça o futuro do país

O Projeto de Lei 4.330, em trâmite na CCJ da Câmara dos Deputados, viabiliza a generalização e difusão sem amarras da terceirização

Para uma sociedade se estruturar com a mínima segurança necessária, as relações sociais, inclusive as de trabalho, não podem ser relações periodicamente entrecortadas e, em consequência, esgarçadas. Além de outros efeitos negativos, o processo de terceirização, na prática, gera exatamente essa inconstância das relações sociais e da possibilidade de se ganhar a vida de modo continuado. Se a terceirização em si já é nefasta, sua generalização e difusão na economia coloca em risco a organização social.

O ser humano é um ser que trabalha e o faz de modo social e histórico. Essa afirmação Pacarrega duas possibilidades de interpretação. Numa perspectiva mais filosófica, ela significa que a humanidade, para sobreviver (se alimentar, proteger, reproduzir), precisa modificar a natureza, o que se efetiva por meio do trabalho, e significa, ainda, que as formas de conseguir a sobrevivência e a vida são construídas socialmente no desdobrar da história. Numa outra perspectiva, mais concreta, sob o capitalismo, ganhar a vida implica, para todos aqueles que não controlam algum recurso que gere renda, ter uma ocupação remunerada (ou depender de alguém que receba um rendimento do trabalho). Por meio das relações sociais de trabalho e produção, as sociedades se organizam. Não são apenas as relações sociais de trabalho que estruturam uma sociedade, mas elas ainda são os alicerces principais. Sobretudo em nossa sociedade, que se caracteriza pela invasão crescente, em todas as suas esferas e relações, das práticas e valores mercantis, isto é, pela hegemonia totalizante do mercado. Afinal, para consumir (e, assim, realizar a regra mais básica do mercado), a pessoa precisa ter dinheiro; e, em geral, para ter acesso a dinheiro, tem que trabalhar ou obtê-lo de quem trabalhou e foi remunerado.

O Dieese, em sua Nota Técnica nº 112, conceitua a terceirização em termos gerais: “Terceirização é o processo pelo qual uma empresa deixa de executar uma ou mais atividades realizadas por trabalhadores diretamente contratados por ela e as transfere para outra empresa.” Hoje, no Brasil, o processo de terceirização da prestação de serviços é regulado por algumas referências legais exatamente porque a intermitência das relações sociais trazida pela terceirização ameaça a organização social, a sobrevivência dos que vivem do trabalho e a qualidade dos produtos e serviços fornecidos à população.

O Projeto de Lei 4.330, em trâmite na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, viabiliza a generalização e difusão sem amarras da terceirização. Caso seja aprovado no Congresso Nacional, o PL 4.330 se traduzirá numa ampla retirada de direitos das pessoas que vivem do trabalho, tanto de direitos consagrados em acordos e convenções coletivas, quanto dos que constam em leis. O PL 4.330 possibilita, no limite, a contratação apenas de trabalhadores autônomos (sob a figura de “empresa sem empregado”), o que seria derrubar, de uma vez, toda a CLT e os direitos previstos na Constituição, como salário mínimo, limite da jornada de trabalho e pagamento de hora-extra, descanso semanal remunerado, décimo terceiro e férias, entre diversos outros. A terceirização na prestação de serviços se traduz na transformação de relações de trabalho em relação comercial, entre empresas, em que o bem transacionado é o trabalho alheio.

Pelas experiências concretas que temos com a terceirização, não só no Brasil, conforme publicado regularmente em matérias da imprensa, podemos ver que os trabalhadores de empresas terceiras sofrem mais com acidentes e mortes no trabalho, têm remuneração menor, vínculos de emprego mais breves, menos direitos e mais direitos sonegados. É notório e reincidente, no Brasil, o uso de trabalhadores bolivianos em situação análoga à escravidão na cadeia terceirizada de produção de roupas de luxo. Em outros países do mundo, também se conhecem as jornadas exaustivas em empresas terceiras, as taxas elevadas de suicídio em terceirizadas da Apple e os menores trabalhadores na indústria de calçados. O desabamento do prédio com oficinas de confecção em Bangladesh, com mais de mil mortos, chamou a atenção para os acidentes e mortes na cadeia de subcontratação terceirizada. Mas também no Brasil, como no setor de petróleo e de eletricidade, as mortes são bem mais frequentes entre trabalhadores de empresas terceirizadas do que no efetivo próprio das empresas.

Como se não bastasse, também sob a ótica do consumidor, a terceirização significa perda de qualidade do bem oferecido. Isso é verdade tanto para os serviços de tele atendimento quanto de eletricidade, entre outros.

Apesar de tudo isso, governos e empresários se empenham na aprovação do PL 4.330. Os empresários, numa visão imediatista, acreditam que a nova lei trará ganhos financeiros. Os governos (em todas as esferas do Estado), por sua vez, hoje já terceirizam setores relevantes da administração direta e das empresas públicas e, assim, pretendem com a aprovação do PL legalizar uma situação que, perante a norma atual, é irregular. A terceirização da administração direta viola a norma de ingresso por concurso público. Tanto governos quanto empresários não percebem que a generalização da terceirização coloca em risco o seu futuro, ao ameaçar as condições de trabalho da população e a organização social do país.

O PL 4.330 constitui uma reforma trabalhista ampla e irrestrita, legalizando a precarização. Ele altera, para pior, as condições de trabalho, de contratação e de remuneração, além de retirar garantias de que gozam os empregados nos casos de fechamento de empresa e de ameaça a seus direitos sindicais e legais. O PL 4.330 é uma ameaça às condições de vida e à própria vida dos trabalhadores brasileiros. Coloca em risco o futuro dos jovens que estão ingressando na vida adulta e no mercado de trabalho. Põe em perigo real a organização social e o futuro da nação.

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