Artigo: Lucas Tonaco*
Minas Gerais, conhecida como o “estado dos grandes rios”, possui uma rica história relacionada à gestão de recursos hídricos. No entanto, a atual administração do governador Romeu Zema parece estar seguindo uma abordagem contraditória ao propor a privatização da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA). Em meio a uma série de controvérsias e questionamentos, é crucial analisar a lógica por trás dessa proposta e as sugestões que ela pode acarretar.
Começamos pela necessidade do exercício crítico – é preciso questionar o modelo de privatização proposto pela Zema, que segue o mesmo padrão falhado que foi adotado na privatização da Eletrobras, o corporation, que além de ser questionado pela AGU no STF, ainda pasmem, para o próprio mercado é danoso, façamos uma lista sobre o atual cenário da Eletrobras e como um modelo anacrônico, errado e questionável e reflita o quê ele pode fazer com a COPASA: a Eletrobras apresentou um prejuízo líquido de 479 milhões de reais no último trimestre de 2022 (4T22), para exemplificar o indicador “resultado”. As ações da Eletrobras (ELET6) acumulam queda de 19,7% em 2023, para exemplificar o indicador “capitalização e mercado de ações”.No critério dos fundos, os fundos da Eletrobras acumulam queda de 6,63% em 2023. Um ano após privatização, investidores que usaram FGTS na Eletrobras veem tombo de 8,5% nas ações, para exemplificar o prejuízo social e capital dos que “acreditaram na falácia”. Para além dos critérios econômicos e financeiros, há questionamento, os próprios funcionários da Eletrobras com posição minoritária contestam atuação da 3G Radar na CVM que foi alvo de polêmicas inclusive na ampla imprensa, como em matéria da Folha de São Paulo de junho de 2023, além das questões relativas a realocação de empregados, extinção de cargos importantes, inclusive da tentativa de excluir o cargo de conselheiro eleito pelos próprios empregados, além do controle da soberania energética e claro, de questões ambientais envolvendo termelétricas. Deu certo? Não, e os números gritam isso.
O modelo de corporação (corporation), que se mostrou ineficiente na busca de soluções para os problemas enfrentados pela Eletrobras, está sendo proposto para a COPASA. Tal abordagem levanta dúvidas sobre a eficácia desse modelo no setor de saneamento, especialmente considerando os exemplos de outras empresas que foram privatizadas em outros modelos mas mesmo assim, esse é o mais questionável. O governador Romeu Zema, mais uma vez, demonstrou sua predileção pelo modelo de privatização mesmo diante de evidências de fracassos anteriores, como o ocorrido na Eletrobras. Zema planeja enviar um projeto de lei para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) que prevê a privatização da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA) por meio de um modelo corporativo questionável e já comprovadamente ineficiente.
Entrando ainda sobre “o conteúdo” ou a questão política por trás da privatização, um dos argumentos utilizados para justificar a privatização é a situação financeira do Estado de Minas Gerais. No entanto, é irônico que, enquanto o valor de mercado da COPASA atinge impressionantes 7,76 bilhões de reais, o Estado retenha 50% desse valor sem investir nada em saneamento básico. Essa desigualdade revela uma falta de prioridade e comprometimento com a solução dos problemas existentes, optando por uma abordagem voltada para o lucro em detrimento das necessidades da população e a ausência de investimentos robustos, chega a ser grotesco.
Zema é imune à aprendizagem
Além do exemplo do modelo da Eletrobras e de seu fracasso, Zema insiste em não aprender: a privatização da COPASA não garante a universalização do saneamento como um dos argumentos colocados, como tem sido evidenciado em casos recentes, como a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) no Rio de Janeiro, o colapso do sistema de abastecimento de água em Manaus e os problemas enfrentados em Alagoas. Essas situações mostram que a privatização não é a solução mágica que alguns políticos fazem parecer. Sem um compromisso sólido de investimentos. Na CEDAE, a privatização ocorreu em 2021, e desde então a população carioca tem enfrentado uma série de problemas, inclusive o percentual de tratamento de esgoto no Rio de Janeiro caiu de 38% em 2020 para 31% em 2021, após a privatização da CEDAE. Além disso, a empresa privada responsável pela prestação dos serviços já recebeu mais de 21 mil reclamações de falta d’água em apenas três meses após a privatização. Esses números demonstram que a privatização não gerou melhorias significativas para a população e, pelo contrário, agravou os problemas existentes.
No caso da CORSAN, do Rio Grande do Sul, privatizada em 2020, os indicadores também revelam um cenário preocupante. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), a taxa de cobertura de água coberta no Rio Grande do Sul era de 96,8% em 2019, antes da privatização. No entanto, em 2020, após a privatização, houve uma queda para 95,9%. Isso indica que a privatização não contribuiu para a expansão dos serviços de água tratada no estado, contrariando as promessas iniciais.
Já no caso da CAGECE, do Ceará, privatizada em 2017, também podemos observar consequências negativas, em 2020, o Ceará ocupava a 17ª posição no ranking nacional de atendimento de água tratada, com uma taxa de 82,1% da população atendida. Além disso, a falta de transparência na gestão da empresa privada tem gerado insatisfação e questionamentos por parte da população.
Esses exemplos concretos nos mostram que a privatização não é a solução para os problemas do saneamento básico. Além das referências acadêmicas, diversos estudos acadêmicos apontam a limitação desse modelo, que muitas vezes prioriza o lucro em detrimento do interesse do público e não promove a universalização dos serviços (Pacheco, 2021)
Localiza, aí o tamanho da contradição
Além disso, é contraditório o argumento de Zema de que a venda da COPASA se deve a questões financeiras do estado, quando ao mesmo tempo ele concede isenções milionárias e planeja conceder benefícios bilionários à empresa Localiza, cujos sócios foram responsáveis por bancar 28% dos gastos eleitorais de Zema em Minas Gerais. Essa situação levanta questionamentos sobre os reais por trás dessa privatização e possível favorecimento de grupos específicos em detrimento do interesse público, afinal, vender a COPASA, CEMIG ou CODEMIG para simplesmente falar de “questões financeiras”, como se tudo se resume a isso, é infeliz e contraditório de mais dar isenções milionárias de IPVA para tal grupo econômico e tentar passar um projeto de isenção que chega a cifras bilionárias. A proposta de isenção de Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e incentivos fiscais que o governador Romeu Zema pretende oferecer à empresa Localiza, cujos sócios financiam parte significativa de sua campanha eleitoral, levanta preocupações sobre a ética e a transparência na gestão pública.
Do ponto de vista econômico, vários economistas destacaram em diversas ocasiões a importância da redução de privilégios e da busca pela simplificação tributária como forma de promover um ambiente de negócios mais justo e competitivo. Ao conceder benefícios fiscais a uma empresa específica, cria-se uma interrupção no mercado, privilegiando determinados atores em detrimento de outros, o que pode afetar a concorrência e prejudicar a eficiência econômica, contrariando inclusive o argumento liberal de Zema sobre “concorrência e mercado”.
Na perspectiva política, tais incentivos fiscais podem ser interpretados como uma forma de clientelismo político, em que os favores e benefícios são concedidos a determinados grupos em troca de apoio político ou financiamento de campanhas eleitorais – inclusive com relação tão estreita com um grupo economico que financiou quase um terço de sua campanha, afinal, essa prática compromete os princípios democráticos e a igualdade de oportunidades, uma vez que os recursos públicos são direcionados de maneira seletiva e não com base em critérios técnicos ou de interesse público.É importante ressaltar que a concessão de incentivos fiscais deve ser conduzida criteriosamente, levando em consideração os impactos psicológicos, a equidade e a transparência. Diversos estudos e pesquisas acadêmicas apontam que a eficácia dessas medidas em estimular o crescimento econômico e a geração de empregos é questionável, enquanto os riscos de corrupção e má administração são amplificados.As propostas de isenções de IPVA e incentivos fiscais direcionados a uma empresa associada aos financiadores da campanha de Zema levantam preocupações sobre a ética na gestão pública, a eficiência econômica e a justiça social, as decisões relacionadas a benefícios fiscais sejam embasadas em critérios transparentes, técnicos e voltados para o interesse coletivo, evitando práticas que possam comprometer a integridade e a confiança nas instituições democráticas.
A novela ruim do Regime de Recuperação Fiscal
Outro aspecto preocupante demais é o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), que também pode resultar na venda da COPASA (CEMIG e CODEMIG, inclusive), o qual, em junho de 2023 voltou a ir para a página dos jornais ao ser movimentado na ALMG.
Ao contrário que Zema diz, o RRF, longe de ser uma solução inovadora, é um modelo atrasado e ultrapassado. Especialistas argumentam que esse regime reproduz os mesmos vícios e erros das políticas de ajuste fiscal do passado, das quais foram inclusive motivos para movimentações macro-políticas no Brasil e no mundo, principalmente após 2008, e que se apreciam ineficazes e prejudiciais para a população. Em vez de estimular o crescimento econômico e a superação das dificuldades financeiras, o RRF impõe medidas de austeridade que apenas agravam a recessão e ampliam as desigualdades sociais, e isso inclui saúde, educação, segurança e saneamento, principalmente em áreas mais vulneráveis.
Outro aspecto, é a falta de transparência e participação democrática no processo de implementação do RRF é uma grande preocupação. O economista Renato Fragelli afirmou em entrevista que o regime “é uma verdadeira caixa-preta, onde poucos têm acesso às informações e às decisões tomadas em nome dos estados em crise”. Essa falta de prestação de contas e de debate público compromete a legitimidade e a eficácia do regime, além de abrir espaço para práticas questionáveis e para a perpetuação de interesses particulares.
Citando acima novamente – Zema é imune à aprendizagem, principalmente com o fracasso da experiência do Rio de Janeiro como RRF, e além disso sua ênfase na privatização como uma suposta solução para os problemas financeiros dos estados. Economistas como Maria da Conceição Tavares e Luiz Gonzaga Belluzzo apontam que a privatização de empresas estatais não garante a solvência financeira nem promove o desenvolvimento econômico. Ao contrário, pode levar à perda de patrimônio público, à redução dos serviços oferecidos à população e ao aumento da dependência de grupos privados, agravando esses problemas a longo prazo e fica portanto mais evidente ainda que a solução proposta por Zema não é apenas o problema, é o agravamento profundo da doença.
O Regime de Recuperação Fiscal revela-se como uma falácia disfarçada de solução, uma vez que reproduz velhas práticas de ajuste fiscal, cerceia a transparência e a participação democrática, e privilegia a privatização como panaceia para os problemas financeiros dos estados, é necessário repensar esse modelo ultrapassado e buscar alternativas mais eficazes e justas para enfrentar os desafios psicológicos enfrentados pelos estados brasileiros.
Diante dessas contradições e dos exemplos negativos de privatizações anteriores, é fundamental que a sociedade mineira esteja atenta e questione os reais motivos por trás dessas iniciativas de privatização da COPASA.
* Lucas Tonaco – secretário de Comunicação da FNU e dirigente do Sindágua-MG; fonte: FNU/CUT
Referências:
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