O trabalho de cuidado abrange o maior número de trabalhadores em empresas-plataforma, segundo o World Employment and Social Outlook 2021: The role of digital labour platforms in transforming the world of work, estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essas plataformas vendem o trabalho de cuidado com outras pessoas – crianças, idosos e pessoas portadoras de deficiência – e com o ambiente doméstico – como cozinhar, limpar ou passar roupa.
Atividades estas que, como sabemos, são socialmente consideradas como responsabilidades das mulheres, realizadas gratuitamente por estas nos contextos familiares e também como trabalho remunerado em ocupações precárias. Além disso, estas atividade não apenas são feminizadas como racializadas.
Assim, da mesma forma que é importante considerar os marcadores de classe, gênero, étnico-racial, geracional, de sexualidade e de territorialidade na análise do trabalho em empresas “tradicionais”, o mesmo se faz necessário para a compreensão das plataformas digitais de trabalho. Este olhar interseccional nos ajuda a entender os motivos pelos quais o trabalho de cuidado em plataformas ainda está tão invisibilizado.
Apesar de abranger parte importante do contingente de trabalhadores nessa situação, pesquisas e ações legislativas têm centrado sua atenção nos setores de entrega e de transporte individual de passageiros em plataformas. Nesses casos, trata-se de trabalhos que são realizados nos espaços “públicos” e visíveis e, em sua grande maioria, por homens.
No Brasil ainda pouco se sabe sobre as vivências e os perfis das pessoas que trabalham nas plataformas de cuidado. Pouco se sabe também sobre suas condições de trabalho e sobre as formas de governança das empresas-plataforma.
Para o nosso argumento vamos citar algumas plataformas deste setor, que estão a mais tempo nos mercados regionais e locais: por exemplo, a Home Angels, a Zelo, a Hugs, a Befine e a Seu Cuidador. Entre aquelas que oferecem o trabalho de cuidado com pessoas, e o cuidado com o espaço doméstico, temos a Mary Help, a Na Vizinhança e a Maria Brasileira.
Essas plataformas, assim como as de outros setores analisados nesta série, apresentam formas muito diferentes de organização e de relações com clientes e trabalhadores. Algumas cobram um determinado valor por pacotes de serviços, cujos preços variam de acordo com a quantidade de trabalhadores e o tempo de trabalho. Outras vendem diferentes atividades, denominadas pelas plataformas como “unidades de serviços”, como lavar, passar roupas ou limpar apenas determinados cômodos.
Para o trabalho de cuidado com pessoas, os clientes também devem informar, no site das plataformas, quem receberá o cuidado, isto é, se crianças, adultos, idosos ou bichos de estimação.
Conforme o cliente vai selecionando as diferentes opções oferecidas no site, outras emergem, para que as plataformas possam, a partir dos seus algoritmos, indicar os candidatos para realizar o trabalho demandado. Muitas vezes, a quantidade de horas de trabalho também é calculada por algoritmos, de acordo com informações fornecidas pelos clientes.
A lógica de cálculo dos valores é muito diversa, e depende da plataforma e do tipo de trabalho demandado. Muitas vezes há um valor fixo por pacotes de serviços e, em outras, a definição é realizada a partir da conversa entre o trabalhador escolhido e o cliente. Os trabalhadores, muitas vezes, recebem materiais informativos, criados pelas próprias plataformas, sobre como fazer a “negociação” de salários com clientes.
Nos sites das plataformas são exibidos os perfis dos trabalhadores cadastrados e suas avaliações, seguindo uma lógica que beneficia desproporcionalmente os clientes, dado que os trabalhadores não podem escolher seus clientes. Além disso, este modelo de governança pode reforçar estruturas discriminatórias de gênero e/ou étnico-raciais, conforme ressaltado no relatório da OIT, Conceptualizing the role of intermediaries in formalizing domestic work. ILO working paper: Conditions of Work and Employment Series, de 2018.
No caso de outras plataformas de trabalho, como as de entrega e de transporte individual, os clientes também recebem as fotos dos trabalhadores, mas apenas após a demanda do trabalho ter sido feita e aceita por estes últimos.
No que se refere aos ganhos das plataformas, além da cobrança de taxas nos preços dos serviços prestados pelos trabalhadores, da cobrança de mensalidades dos trabalhadores, da venda de dados de consumidores e trabalhadores a outras empresas [3], elas também vendem aos trabalhadores a possibilidade de colocar seus perfis em destaque no site, dando-lhes maior visibilidade.
É como se trabalhadores alugassem espaços para conteúdo patrocinado, como o esquema da Google Ads. Entretanto, como numa empresa “tradicional”, são as plataformas de trabalho que definem todas as regras da relação que estabelecem com os trabalhadores e entre estes e os clientes. Sobretudo, são elas que admitem e demitem (desconectam) os trabalhadores.
A título de exemplo, trazemos o caso da CasaeCafe. Trata-se de uma empresa-plataforma de cuidado que cobra valores fixos de trabalhadores para manter seus perfis disponíveis e que, de acordo com informações em seu site, tem mais de 800.000 profissionais cadastrados em todo o Brasil, sendo a maioria deles mulheres.
Em uma busca na internet foi fácil encontrar reclamações sobre a plataforma. Por exemplo, no site “Reclame Aqui”, uma trabalhadora afirma ter tentado diversas vezes cancelar o seu plano na plataforma, a partir do envio de e-mails, sem receber nenhum retorno. Ela relata que, além de estar desempregada e sem dinheiro, precisa ficar pagando a mensalidade.
Ademais, a falsa relação triangular (entre prestadores de serviço-plataformas-clientes) coloca outros desafios e problemas para quem trabalha em plataformas de cuidado, especialmente a dificuldade para identificar quem, de fato, são os empregadores: são as plataformas ou os consumidores? E, ainda, quem se responsabiliza pelos riscos para a saúde e segurança dos trabalhadores, seja no cuidado de outras pessoas ou dos ambientes domésticos?
Mas os consumidores também ficam sem respaldo diante de possíveis problemas. Afinal, quem se responsabiliza pelo trabalho realizado e por possíveis erros que os trabalhadores possam cometer e suas consequências para as pessoas que recebem o cuidado? E as situações de conflito que possam se estabelecer entre os clientes e os trabalhadores, quem faz a mediação?
Apesar de muitos dos problemas tratados aqui não serem novos, eles se intensificam com a entrada das plataformas de trabalho no cenário; e a ausência de regulação do trabalho entre trabalhadores e as empresas-plataforma impossibilita a responsabilização jurídica destas.
Entendemos que esse processo de precarização laboral causado pelas plataformas de trabalho de cuidado só pode ser superado a partir da aplicação de leis e políticas que regulamentem o emprego, o trabalho doméstico, o de cuidado e, ao mesmo tempo, as empresas-plataforma de uma forma geral.
Nesse sentido, bastaria aplicar as legislações que já existem, a exemplo da Constituição Federal, da Consolidação das Leis do Trabalho e da Lei complementar 150/2015, que regulamentou os direitos dos trabalhadores domésticos, estendendo esses direitos para aos trabalhadores em plataformas digitais de trabalho.
Maria Júlia Tavares Pereira e Ana Claudia Moreira Cardoso, Outras Palavras