É ou não é piada de salão, tem bandido de gravata defendendo a redução.” Com faixas e cantos irônicos, milhares de jovens e militantes sociais protestaram na segunda-feira (13) na Praça de Sé, centro de São Paulo, contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171, de 1993, que reduz a idade penal de 18 para 16 anos e em comemoração aos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para eles, o caminho é claro: efetivar as políticas previstas no ECA, proporcionando condições para o pleno desenvolvimento educacional, cultural e profissional dos jovens.
Outros 24 estados realizaram protestos no dia de hoje, contra a proposta de redução da maioridade penal. No Rio de Janeiro, a manifestação ocorreu na Candelária, no centro da capital fluminense. A presidenta do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, Mônica Alkmim, disse que os protestos são para mostrar que muita gente é contra a redução da maioridade penal. “A gente quer mostrar para a população que temos argumentos para ser contra, que é preciso, primeiro, efetivar o ECA, com todos tendo acesso a direitos”, afirmou.
“É uma proposta muito injusta. O governo não oferece boas condições para o adolescente estudar, ter uma formação e futuramente conseguir um emprego. Se cometer crime tem de ser punido, ok. Mas tem de ver que, muitas vezes, essa é a alternativa que tem para viver”, avaliou o adolescente João*, de 16 anos, presente ao ato.
Para João, não haveria problemas em reduzir a idade penal se houvesse políticas públicas eficientes de formação educacional e profissional para os jovens. “Precisa alimentar a família, precisa cuidar da mãe, quer estudar. Mas trabalho não tem. A pessoa que tem a mente mais fraca faz o quê? E aí você vai lá e joga numa cadeia esse jovem a quem não foi dada condição de viver bem? Se tivesse boas condições para todo mundo eu não seria contra a redução”, completou João.
A indicação do jovem faz sentido, observando-se os dados de empregabilidade dos jovens levantados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo estudo divulgado em 2013 – com dados de 2012 –, 12,6% dos jovens entre 15 e 24 anos estão desempregados em todo o mundo. No Brasil, o percentual para essa faixa etária foi de 13,7%, muito acima da taxa geral, que era 5,5%.
No entanto, como destacou o membro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança do Adolescente (Conanda) Fábio Paes, os parlamentares parecem não estar interessados nos indicativos sociais. “Foram realizadas poucas audiências públicas para debater o assunto. Os especialistas em criminalidade, do Direito, da Psicologia e das ciências sociais foram ignorados”, destacou. Mais da metade das audiências provadas pela comissão especial que analisou o projeto na Câmara não foi realizada.
Para ele, a PEC 171 é parte de um processo de privatização da segurança pública, representada pela chamada bancada da bala, formada por parlamentares financiados pela indústria bélica e prestadores de serviços de segurança, e por militares. “A proposta é uma das estratégias que os financiadores de políticas de segurança privada querem emplacar. Os especialistas são excluídos, porque o que importa é encarcerar”, afirmou.
A PEC 171 foi aprovada em primeiro turno na Câmara Federal, no último dia 2, após uma manobra do presidente da casa, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que recolocou o projeto em votação, mesmo a matéria tendo sido rejeitada no dia anterior. Na quarta-feira (1º), a PEC teve 303 votos favoráveis – dos 308 necessários – e 184 contrários. No entanto, voltou à pauta com supressão de alguns termos, e foi aprovada por 323 votos e 155 contrários. A proposta ainda precisa passar por uma nova votação na Câmara e duas no Senado.
Marcha
O ato teve início às 13h, no Vale do Anhangabaú, região central de São Paulo. De lá, os manifestantes saíram em marcha pelas ruas do centro até a Praça da Sé, onde foi realizado o ato político-cultural. “Há 25 anos, nesta mesma praça, milhares de crianças, adolescentes e ativistas se fizeram ser ouvidos pelo Congresso, pela aprovação do ECA. Hoje estamos aqui para ser ouvidos de novo. Não passará essa proposta de morte”, afirmou Sueli Camargo, coordenadora arquidiocesana da Pastoral do Menor. Ela acredita que a proposta deve ser barrada pela força nas ruas.
Os ativistas buscaram ainda explicar à população, durante o ato, que muitos dos argumentos dos defensores da redução são “falácias”. “Um jovem internado no centro socioeducativo custa três vezes mais do que um jovem na escola. A punição dos adultos, com todas as possibilidades jurídicas, pode ser menor que a do jovem, no caso de um crime grave. Encarcerar não reduz a violência. Se fosse assim, o Brasil já devia ser um lugar calmo. É tudo conversa”, afirmou o rapper e conselheiro tutelar Rodrigo de Oliveira, o DiMenor.
Segundo dados de 2012 do Conselho Nacional do Ministério Público, somente 8% dos homicídios são elucidados no Brasil. A maioria dos crimes fica impune. Mesmo assim, o Brasil tem 607 mil detentos. Além de a maioria ser pobre e negra, pelo menos 40% deles não foram sequer julgados. Situação que pode se repetir com os adolescentes.
Os jovens também são as maiores vítimas, segundo dados do Mapa da Violência, estudo realizado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). A taxa de homicídio contra adolescentes de 16 e 17 anos aumentou 496,4% entre 1980 e 2013, sendo que 77% dos 30 mil jovens assassinados em 2013 eram negros. “Essa medida é contra a periferia, contra os jovens negros e pobres”, salientou DiMenor.
Membro da Frente Nacional Contra a Redução da Maioridade Penal, o também conselheiro tutelar Leonardo Duarte destacou que são mentirosas as afirmações de que os adolescentes “estão matando descontroladamente” e que “podem fazer o que quiserem e nada acontece”. “O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) compreende as medidas para responsabilizar o adolescente que comete um ato infracional. Isso já existe. Ao mesmo tempo, dá a ele oportunidade de formação educacional, cultural e profissional. Precisamos efetivar esse sistema e o próprio ECA, que já contempla o que há de mais avançado em políticas para a juventude”, afirmou Duarte.
Dados de 2012 do Censo do Sistema Único de Assistência Social, elaborado em 2014, indicam que o Brasil tinha 108.554 adolescentes cumprindo medida socioeducativa naquele ano. O número equivale a 0,18% dos 60 milhões de brasileiros com menos de 18 anos. Do total de adolescentes em conflito com a lei, em 2012, 9% haviam cometido homicídio, 2,1% latrocínio, 1,4% estupro e 0,8 lesão corporal. A prática de roubo respondeu por 38,6% dos casos e o tráfico de drogas, por 27%.
A punição, inclusive, está bem marcada na vida do adolescente Luiz*, de 17 anos. “Passei um ano e um mês na Fundação Casa. Lá dentro você percebe a maldade das pessoas. Depois de passar pela Fundação você reconhece a maldade no olhar. Perdi bastante tempo da minha vida, perdi coisas importantes. Mas tá certo. Depois que eu saí foi só mudança para mim”, relatou.
O jovem atribui a mudança às oportunidades de cursos e a reinserção na escola, além das atividades e do acompanhamento socioeducativo da ONG Unas, de Heliópolis, na zona sudeste da capital paulista. “A maioria das vezes o que tá faltando mesmo é uma escola da hora, um emprego. Só por você morar na favela, isso influencia bastante no que você vai fazer com a sua vida. A gente não tem as mesmas oportunidades, tá ligado. Mas quando tem, o caminho é outro”, afirmou Luiz.
Porém, ainda falta muita coisa no sistema socioeducativo brasileiro. Relatório divulgado no mês passado pelo Conselho Nacional do Ministério Público indica que 40% das unidades de internação para jovens são insalubres e 66% delas estão superlotadas. Além disso, 38,5% das unidades de internação não possuem espaços adequados para atividades profissionalizantes e 28,7% não possuem salas de aula adequadas.
“Nossa defesa é pela implementação completa do ECA e do Sinase. Temos muito orgulho dos dois. Avançamos muito em políticas públicas, temos uma imensa rede de proteção aos adolescentes. Mas ainda temos muito a caminhar. E reduzir a idade penal é jogar fora tudo que foi construído, sem nunca ter utilizado 100% da capacidade. E ainda colocar em risco a proteção contra a exploração sexual e do trabalho, por exemplo”, explicou o diretor do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Interlagos, Djalma Costa.
Rede Brasil Atual